19.12.07

Noite de Natal

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Quem era o Filipe “Ranhoso”? E porque lhe chamavam “Ranhoso”?
Julgo que por esta razão: ouvia dizer que era empregado fabril, mas nunca soube onde trabalhava, vendendo nas horas vagas relógios, canivetes, isqueiros e bugigangas das mais variadas, parecendo assim uma loja dos trezentos ambulante. Já perceberam que o “Ranhoso” não possuía local fixo para vender os artigos, nem ninguém sabia também onde os ia adquirir e, se o alcunharam de “Ranhoso”, devia ser pelo facto de só vender uma ranhozices, mas que faziam as delicias dos compradores e dos que assistiam ao negócio.
Além do mais, a fala do “Ranhoso” era um tanto ou quanto trapalhona e por vezes difícil de perceber. Eu, sinceramente, sentia muitas dificuldades em o entender e às vezes perguntava ao vizinho do lado, como se ele fosse o meu tradutor; todavia dava-me gozo ouvi-lo a explicar a utilidade dos coisas que vendia.
Pelo Natal, as famílias juntam-se e eu, para não fugir à regra, também seguia essa tradição. Habitualmente a noite de Natal é friorenta, cai chuva de molha tolos, está nevoeiro, os pais aproveitam para confirmar aos seus rebentos que o tempo está a adivinhar a chegada do Pai Natal e consequentemente amanhã haverá prenda no seu sapatinho.
Naquela noite, enquanto minha mãe fazia filhós e outras doçarias, e por essas terras do nosso País se assistia à missa do Galo, eu e mais meia dúzia de amigos fomos fazer uma visita à colectividade local, praticamente vazia, estando os dois directores de serviço ansiosos pela saída dos retardatários a fim de fecharem o “estaminé”, pois decerto também quereriam ir para o seio familiar.
A faltar aí 15 ou 20 minutos para a meia noite, aparece o “Ranhoso” com o que lhe restava das entregas feitas naquele fim de dia e há muito encomendadas, para fazer felizes, na manhã do outro dia, os premiados pela visita do Pai Natal, encaminhando-se apressadamente para os sanitários.
Assim que o vimos chegar, preparamo-nos para fazer um pouco de sala e mirar o que ele desta vez trazia.
As retretes daquela colectividade não tinham sanitas, em virtude de ser daquelas que têm um buraco e um local próprio para colocar os pés.
Neste entretanto, a luz eléctrica apagou-se e o “Ranhoso” desata lá de dentro a protestar sem possibilidade de lhe podermos acudir, visto ser um corte geral na povoação. Ele não se calava e todos, que não seriam mais do que 9 ou 10, fomos até aos sanitários. Um dos meus amigos tira do bolso um isqueiro, acende-o e vimos que a coisa estava torta: o “Ranhoso” com o cu à mostra e com uma mão a segurar as calças pelo meio das pernas protestava e apontava para o buraco onde tinha acabado de fazer a sua necessidade fisiológica. Assim que se apanhou com luz, o “Ranhoso” ajoelha-se como se estivesse a fazer penitência, mete o braço por ali abaixo perante a perplexidade dos presentes, enquanto o que tinha o isqueiro na mão queimava o dedos e apagava-o. O Ranhoso levanta-se e, com a sua voz atabalhoada, pede por favor para o acenderem novamente e Deus fez-lhe a vontade, reacendendo-se novamente a luz eléctrica.
E então, para nossa plena satisfação, a cena repete-se com o “Ranhoso” a meter novamente a mão até lá bem em baixo, para pegar...(?) era uma incógnita.
Finalmente, os dedos lá pegam o procurado e o homem levanta-se feliz e contente trazendo uma pistola da marca Star 6,35, sua propriedade, que tinha dentro duma bolsa de cabedal pendurada no sinto das calças e que, ao desapertar o cinto e faltando-lhe a luz, o “Ranhoso” deixou cair no buraco fazendo-lhe a “larada” por cima.
Com todos os assistentes a rir, olho para pistola que mais parecia uma pistola de chocolate, fazendo-me imediatamente lembrar aquelas com que eu quando miúdo brincam no dia de Natal e a comia aos bocados, começando sempre pelo cano e vimos o “Ranhoso”, ainda com as calças na mesma posição, lavar a pistola debaixo da torneira do lavatório; e como o cano daquela estava entupido com matéria estranha ao seu funcionamento, a água quando lá chegou fez ricochete, deixando os óculos e a sua cara a necessitarem de uma desinfecção urgente.
O Pai Natal atarefado a fazer a distribuição dos “presentes” pelo mundo cristão, e talvez aborrecido com a concorrência desleal que o “Ranhoso” lhe fazia, não quis perder a oportunidade de lhe pregar esta partida. Acredito que não se terá apercebido de que o “Ranhoso” estava em apuros e que não seria a altura mais indicada para lhe dar a prenda, até porque ali não existia chaminé nem o sapato engraxado para o efeito.
Os Directores de serviço naquela noite, o “Ranhoso” e os nove ou dez assistentes a esta cena de Noite de Natal e simultaneamente Carnaval da Vida, foram durante muitos meses assunto de conversa na minha aldeia.

4.12.07

O entulho

Vivi com a família 2 décadas numa cidade do Norte, a garagem da nossa casa necessitava de obras, pelo que resolvi meter mãos à obra, contratando um trolha e servente. Parede daqui, colocação de azulejos, pavimento vidrado e até um tanque de cimento, onde se lavava a roupa foi partido, porquanto não fazia falta.
A partir de certa altura era necessário deitar o entulho fora, que à falta de transporte adequado passou a ser problema.
Meus sogros passavam grandes temporadas em nossa companhia e ajudavam-me sempre que precisasse.
Matutei na maneira de me desfazer de tanto entulho e lembrei-me do seguinte:
A Cidade estava permanentemente em obras de construção com aterros e desaterros em toda a parte, pelo que o problema era de fácil resolução. Procuraria um sítio de aterro onde pudesse deitá-lo. Sabia que não é permitido fazê-lo, mas achei que se ficasse no sítio certo, não viria nenhum mal ao mundo e o construtor até agradecia.
Numa carrinha de 2 lugares, carreguei quanto pude e de noite não fui muito longe; bem perto da minha residência havia o local ideal para o efeito.
Todavia, havia algo com que eu não contava. É que em todos os locais onde fomos havia sempre um carro parado, presumivelmente com um parzinho de namorados. Quando já não sabia o que fazer, deparou-se-nos um local estupendo, à entrada de uma azinhaga que não tinha saída, ali mesmo ao lado duma obra. Fiz marcha-atrás e despejei o entulho logo ali à entrada voltei a casa mais 3 vezes e sucessivamente fui fazendo um monte, que passou a montão e finalmente a castelo. O entulho como já disse, era composto de restos de azulejos e mosaicos vidrados, restos de parede e culminava com os bocados do tanque da roupa agarrados ainda aos ferros que lhe davam forma.
Aí, a coisa pôs-se feia, dado que bem lá no fundo da azinhaga se encontrava um carro que, como todos os outros a que já me referi, estava ali no esfreganço. Para evitar discussão acesa, resolvi pirar-me deixando lá o desgraçado que em marcha-atrás só viu o entulho quando lhe encostou. Faço ideia das pragas que o moço rogou ao filho da mãe que o entalou, enquanto retirava o entulho até ter espaço disponível para sair dali com o carro. E imagino, agora já passados anos, como contará a história aos amigos.
Mas acontece que o Zé do Cão ainda não estava totalmente livre do resto do entulho.
Um mês antes, tinha ido com a família a Tenerife; levámos uma mala de viagem de veludo castanho, por sinal muito bonita, só que os bagageiros não se compadeceram da sua boniteza e trataram de colocá-la no porão do avião, por debaixo de mais 300 malas dos outros passageiros, ocasionando que quando a vi, coitada, estava marreca, tinha falta de ar e com a língua de fora. Enfim estava num estado lastimoso e a língua era uma gravata que já saía das suas entranhas. Logo ali, em pleno Aeroporto “Reina Sofia”, resolvemos comprar outra para sua substituição, coisa que não fizemos, pelo que a desgraçada teve de fazer a viagem de retorno sujeita a dar-lhe a trombose final.
Ela, coitada, ali estava na garagem à espera do abandono que lhe daríamos, dando ais à sua vida e sem saber onde iria parar.
Então resolvi enfiar-lhe todo o resto daquelas matérias que foram primas e, para a fechar, já me vi aflito. Quando a pus em pé, quis mete-la na carrinha, mas não fui capaz.
O seu peso ultrapassava largamente as minhas forças. Chamei o meu sogro que não sabia nada daquilo e pedi-lhe que a metesse na carrinha. Coitado, quase que foi ao chão e ela nem se mexeu.
Para a subir, foi necessário eu, meu sogro e meu filho mais velho, para a retirar, olha, era descair e já estava.
Cerca das 22 da noite, meti-me na viatura com o meu sogro ao lado, inquieto e desejoso de saber qual seria o meu pensamento, que digo de verdade até aquela altura não era nenhum, mas ao passar por uma paragem de autocarro lembrei-me: e se eu a deixasse aqui? Meu dito meu feito, é isso mesmo. Só que em todas as paragens de autocarro sempre havia um passageiro à espera e não era conveniente fazer aquela operação com alguém a mirar.
Acabei por desistir. Dirigi-me a um parque de estacionamento de uma grande superfície. Já havia poucos clientes e o espaço onde estacionam as viaturas já tinha poucos carros. Parei junto a um qualquer, puxei a mala, caiu e ficou em pé junto à porta do condutor, do escolhido, tendo-me colocando em observação afastado, para ver o efeito.
Dali a pouco lá vem um cavalheiro com as chaves do carro na mão e a assobiar, vê a mala ali mesmo à mão, olha para todos os lados, não vê ninguém, abre a bagageira da sua viatura, e pega na mala. Qual quê! O homem tinha lá força para aquilo; faz segunda tentativa com as duas mãos, juntando-a ao peito e quando a metia na bagageira o fecho abriu e aí, amigos, foi coisa linda: o entulho entornou-se parte para dentro, parte para fora e o homem ficou sem pinga de sangue e os sapatos em mísero estado.
Ficou atrapalhado, tendo acabado por colocar a mala também lá dentro, arrancou com tanta força que até os pneus patinaram.
Adorava ouvir a história contada por ele. Quantas pragas também me pregou…
Na realidade, agora, passados vários anos, reconheço que merecia umas arrochadas pelas costas abaixo, não acham?

23.11.07

O celular

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Ao iniciar este conto, devo esclarecer os que dedicam algum tempo à sua leitura, que o Albano (nome verdadeiro) foi o melhor amigo que tive na vida, foi aquele com quem tive passagens inesquecíveis. De linguagem fácil e com permanente dose de humor, fazia de nós uma parelha inseparável.
Era o amigo que todos gostariam de ter pela vida fora e aqui para nós, podem crer, que falta me faz este AMIGO.
Este conto não é mais do que uma homenagem que lhe pretendo prestar, pelo seu falecimento em Novembro de 2006, vítima de ser fumador. Doença terrível e de grande sofrimento.
Eu era mais velho do que ele 5 anos, conheci-o quando tinha 14 e fui eu que lhe arranjei o seu primeiro emprego.
Fruto daquela doença, em fases agudas esteve no último ano da sua vida internado várias vezes em Hospital e numa delas passou-se este caso.
Contrariando as normas hospitalares, ele conseguia levar o telemóvel lá para dentro, para não se sentir tão só. O aparelho era grande mas gostava dele porque telefonava, era a sua função e isso já o deixava satisfeito.
Numa das vezes, ao receber uma chamada de alguém amigo mas que desconhecia o seu internamento, participou-lhe que estava no hospital a fazer uns exames. Como a pessoa estranhou o facto, ele rematou a conversa desta maneira.
Sim, sim, com tantos exames, quando sair daqui já sou médico”. Por esta tirada já podem imaginar quão bem disposto era o Albano.
Pela experiência de outras vezes em que esteve internado, sabia que não podia levar carteira, dinheiro, telemóvel etc. Sempre que chegava a altura de entregar os seus pertences, lamuriava-se pelo facto de não poder levar o celular. De uma delas não se lamuriou e foi a própria empregada a chamar-lhe a atenção, pela sua compreensão ao não se fazer acompanhar de tal objecto. Mal sabia ela que ele o levava escondido entre as cuecas e no conforto das suas partes mais intimas. Como estava muito debilitado, foi uma enfermeira que lhe deu banho, contra a feroz resistência do Albano.
A enfermeira, brasileira, com aquele sotaque característico do seu país, insiste, ele continua a não querer, ela já farta e querendo despachar-se, já que outros pacientes aguardavam a sua vez, deita-lhe as mãos às cuecas para o despir e nesse momento exacto o telemóvel começa a tocar a “banda”, o seu toque preferido, perante a admiração da enfermeira, pois não esperava, num hospital, dentro da casa de banho e já com a água quente, ouvir uma melodia do Xico Buarque seu conterrâneo, a surdir de tão estranho sitio.
Os tomates do Albano, já de si murchos da doença e da guerra aberta com a brasileira, mirraram ainda mais e o telemóvel caiu no chão feito em cacos, não havendo portanto possibilidade de saber quem o queria contactar.
Lá tomou o seu banhinho, com a enfermeira de quando em quando a desatar a rir por tão estranha e insólita ocorrência.
No outro dia, como habitual, apareci para o visitar e ao cruzar-me com a enfermeira que já me conhecia como visita do internado, das outras inúmeras vezes que lá fui, cumprimenta-me e diz assim, voltando as costas e seguindo de imediato o seu caminho.
O seu amigo fala pra Pinto”. Como sei o que quer dizer pinto em brasileiro, percebi imediatamente que algo raro se teria passado.
Com muita dificuldade ao falar, com a graça que punha nas suas conversas, lá me contou toda aquela cena e que a enfermeira devia estar admirada do volume que tinha entre as pernas e que o mais engraçado tinha sido quando o gajo começou a tocar, mas que depois lhe tinha lavado as “peles” com muito ternura, talvez ao recordar-se de algum carnaval da Baía lá no seu Brasil distante.
Esquecendo o seu padecimento deu uma gargalhada, que lhe causou um ataque de tosse e houve necessidade de lhe colocar oxigénio.

13.11.07

A minha parvoíce

Hoje levantei-me mais cedo porque tinha de cumprir um compromisso com o meu irmão e deslocar-me a Braga com ele. De um tiro matava alguns coelhos (visitava os meus dois filhos, a residirem naquela cidade), comprava umas castanhas oriundas de Carrazeda de Ansiães e acamaradava-mos, coisa rara entre nós.
No percurso para o ponto de encontro e numa das paragens de semáforo, meteram-me no banco do carro o jornal “Global”, que se publica todos os dias úteis e é distribuído gratuitamente.
Quando cheguei, já tarde, o irmão já tinha partido com o filho e só entrei em contacto como ele através do telemóvel, já a circularem em plena Ponte Vasco da Gama.
Tudo bem. Parece afinal que houve engano ou confusão entre nós na marcação da hora, coisa que não será estranha, já que ambos temos uma idade de criar bicho.
Voltei de rabinho alçado para casa e à falta do melhor entretive-me a ler o referido jornal.
Na primeira página, em letras garrafais, tomava-se conhecimento de que havia nova polémica sobre o aeroporto, envolvendo o Ministro das Obras Públicas. É que aquele insiste que ele deve ser construído na Ota e a Confederação da Industria Portuguesa em Alcochete (em pleno deserto).Para mim e para a maioria dos portugueses, tanto se nos dá que o façam na Ota, em Alcochete ou na cabeça de um careca. Se fizerem na cabeça de um careca, será um aeroporto móvel e portanto dessa maneira é capaz de contentar todas as autarquias que tanto lutam para que se faça no seu concelho. O único problema que é capaz de existir é não haver uma cabeça grande e careca ali à mão, e portanto a escolha torna-se complicada. Haverá por isso mais uns estudos entregues à LNEC e à Confederação e o Ministro mais interessado naquela construção passará a usar chapéu, não vá uma ou as duas entidades que elaboram o estudo lembrar-se dele.
Admiro no entanto a coerência e a perseverança com que o Senhor Ministro das Obras Publicas luta por uma causa em que acredita e põe todo o seu empenho, demonstrando ser homem de palavra e de antes quebrar do que torcer.
Personalidade tão forte, Eng., inscrito na Ordem (segundo afirmou) com conhecimentos profundos a ponto de ser Ministro – de outra maneira, não chegaria lá(?) -, simpatizante e admirador convicto de Espanha e da união Espanha-Portugal, cujo nome passaria a ser Ibéria, não pensou ainda ir oferecer-se a Madrid ao Zapateiro para fazer parte dos quadros de qualquer coisa naquele País, dado até haver conotação na ideologia.
Outra noticia que me chamou a atenção foi aquela do Rastreio colectivo ao cancro da próstata no Parlamento. Acho despropositado o exame nesta altura, já que o S. Martinho ainda só foi há 2 dias e portanto os parlamentares dos mais variados partidos, todos com as calças em baixo em posição de decúbito ventral, a serem enrabados pelos médicos, alguns com unhas grandes e negras da merda do ânus anterior, sujeitos portanto a apanharem alguma doença venérea, a peidar-se uns contra os outros, deveria ser um espectáculo inolvidável e digno de ser apresentado no Pavilhão do Parque das Nações.Quando agora disse que se encontravam na posição de decúbito ventral, ainda me lembrei de evocar (com os tomates à mostra), mas isso seria desvirtuar a realidade, dado me parecer que os parlamentares não os têm nem nunca os tiveram.
E para finalizar, o mesmo jornal, na sua página 6, publica uma fotografia do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, de braços cruzados a apreciar 2 trabalhadores municipais a limpar uma passadeira numa rua, afirmando que “esta zona tem de ficar um brinquinho” e que de imediato vão ser pintadas 5 (“cinco”) novas passadeiras.
Portanto, senhores lisboetas, já podem dormir descansados que nessa ocasião (salvo raras excepções) não serão atropelados. É na realidade uma notícia de grande efeito e interesse à nossa sociedade.
Já me passava… Também informa o “Global” que o senhor presidente da Câmara de Viseu e Presidente da Associação Municípios, foi interceptado pela PSP e informado por uns jornalistas que circulava em excesso de velocidade, não lhe tendo sido aplicada a respectiva multa, sendo mandado em paz.
Quando é que eu chego a Presidente de qualquer merda?

12.11.07

General Cagalhão

Esta história conta uma faceta da minha meninice, igual a tantas outras que as crianças na sua infantilidade cometem e magoam os adultos e mais ainda quando esses adultos são anciãos.
A minha idade rondaria aí uns 8, 9 anos, portanto em plena Guerra Mundial. No meu concelho foram colocados em pontos estratégicos, pelo Ministério da Guerra, canhões de calibre elevado, holofotes que à noite rompiam o céu em todas as direcções, para em caso de necessidade deitar abaixo os hipotéticos aviões alemães que viessem despejar metralha em Lisboa. Simultaneamente, fizeram-se casernas para aquartelar militares.
Aconselhava-se a população a colocar tiras de papel nos vidros das janelas para evitar os estilhaços e as lâmpadas eram azuis para não denunciar as nossas posições.
De quando em quando, havia simulações de ataques e era giro (visto pelos olhos duma criança) toda a gente a correr e a esconder-se nos mais variados sítios, chegando mesmo a ver um bêbado meter-se debaixo duma carroça na ocasião em que por motivo do alarido o cavalo começou aos coices.
O movimento e as conversas dos adultos eram observados pelos miúdos, que depois nas suas brincadeiras os imitavam.
O meu pai trabalhava na maior empresa do mundo que manufacturava cortiça. Mundet, de seu nome. Só em Portugal tinha 5 fábricas, colossos daquela indústria. O desentendimento entre os seus sócios originou uma das grandes calamidades que se abateu sobre as centenas de famílias inteiras que lá trabalhavam. Enquanto os advogados se gladiavam em tribunal, enchendo os bolsos de chorudos vencimentos, os trabalhadores agonizavam na miséria.
Numa taberna perto da minha porta, apareceu por essa altura um ancião, sei lá que idade teria, muito velho, sem dentes, cujo queixo quase encostava ao nariz. Não recordo, se é que alguma vez o soube, de onde veio. A sua casa era um barracão de chapas de zinco, situado a 100 ou 150 metros da minha.
O homem tinha um carinho especial pela miudagem e gostava de nos contar aventuras de que dizia ter sido protagonista. Entre muitas contou-nos esta, que no fundo dá origem à minha narração:
Quando tropa, foi destacado para Moçambique acompanhando Mouzinho de Albuquerque e tinha feito parte do comando que foi prender Gungunhana. A miudagem bebia as suas palavras e ele contava que tinha visto crocodilos de 10 metros, leões enormes, cobras que comiam bois inteiros, que era o cozinheiro do batalhão e que os colegas lhe chamavam por brincadeira “General Cagalhão”.
Que foi o homem dizer... A partir daí, por abuso (as crianças tem sempre tendência para abusar) nunca mais se chamou Almassa, que era o seu nome; passamos a chamar-lhe General Cagalhão.
Evidentemente, coitado do General, deixou de nos contar histórias e a malta nunca mais deixou de lhe chamar General Cagalhão; e o pior é que sempre que o apanhávamos na sua casa e sem possibilidades de nos reconhecer, dávamos grandes murros nas chapas de zinco e gritávamos “General cagalhão”. Quando ele abria a porta já não via ninguém.
Até que um dia ele me topou, fez queixa ao meu pai e este pregou-me uma tareia, que hoje se designaria das modernas, mas que naquele tempo era das antigas.
A partir daí, foi remédio santo: o Zé do Cão, nunca mais chamou General Cagalhão ao General Cagalhão, mas quando passava por ele, baixinho e só para mim, dizia assim: “General Cagalhão”. E dizia só para mim lembrando-me da “pisa” que tinha levado. O General morreu poucos anos depois. Era criança não fui ao funeral, portanto fiquei sem saber se a sua farda levaria as insígnias de tão elevada patente.

29.10.07

A espreita(dela)

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(O verdadeiro nome do pessoal foi trocado)
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Oficialmente e com os descontos para a Caixa comecei a trabalhar em 1948. Era jovem e a empresa para onde fui, estava servida com outros da minha igualha. Mais tarde, desenvolveu-se, cresceu e hoje é uma empresa cotada na bolsa.
Tinha cerâmica, carpintaria, serralharia, ambas mecânica e cível, metalização, uma frota de camiões invulgar, serração, estância, etc., etc... Conforme ia crescendo aumentava o numero dos seus trabalhadores e quando um dia, aí talvez por volta de 1966, resolvi mudar de ares, já tinha ao seu serviço cerca de 500 assalariados. Naquele tempo ombreava com as grandes empresas da mesma especialidade.
A telefonista era uma bela rapariga, esbelta, linda, de 17, 18 anos. O Miguel, um dos Engs da empresa poderia confirmar esta verdade (se não tivesse já falecido), pois passava os domingos, no verão, em Sesimbra na praia do porto de abrigo, observando pelo rabinho do olho aquele monumento andante e pelo outro a sua filhota que com uma pazinha se entretinha a fazer castelos de areia, enquanto a sua esposa dava umas mergulhaças à procura de conchinhas e ouriços do mar. A menina fazia castelos na areia, o papá imaginava castelos onde a princesa encantada estaria clausurada e ele com a espada, armadura e elmo, montado num cavalo alado lutaria com o dragão assanhada e a fumegar, ganhando esta luta, caía finalmente a eleita nos seus braços, e a esposa tinha previsto que ao fim do dia iria fazer um docinho de farófias com claras em castelo, para o pai e para a filha, cabendo-lhe mais do que certo somente uma lambedela no “salazar” (salazar é a peça com que se rapa os recipientes onde se amassa a farinha para bolos).
A Joana, nome da moçoila, coitada, sonhava com outros castelos, lá longe, longe, para os lados do Cabo da Boa Esperança, que afinal se tornaram em Cabo das Tormentas e que também não a fizeram feliz. Isso seria outra história mais complicada do que esta, que não sei em pormenor e é do seu foro íntimo.
Em dada altura, o escritório andava em obras e ficou sem casa de banho (ainda hoje se chama não sei bem porquê, a um cubículo onde existe uma sanita e um lavatório, casa de banho), obrigando os empregados daquela secção a usarem uma no rés do chão e que servia simultaneamente para os do armazém.
Tinha dois compartimentos, ambos exíguos, o de entrada com um lavatório pequenito e no outro uma sanita com tampa de madeira pintada de castanho já descolorida das mijadelas que lhe tinham pregado em cima. Para respirar, e propositadamente, a porta de entrada de cor cinzenta não chegava ao chão, com uma diferença talvez de dois palmos bem medidos, tal como a outra que dividia os dois espaços.
No armazém entre outros, havia um aprendiz, rapaz de 15 anos, cujo nome não recordo, sendo fanhoso e por isso tinha a alcunha de “Pica-Pau”, em homenagem a Walt Disney e era familiar de um dos patrões, que ia observando as idas e vindas da “maltinha” ao banheiro, incluindo como será óbvio a nossa Joana.
Até que um dia, a seguir ao almoço, o “Pica-Pau” estava só e vê a sua vénus, vestida, entrar no banheiro; treme, espevita-se, olha para esquerda, para a direita, pró tecto, e achou que tinha chegado a sua ocasião. Em pleno dia D, qual invasão dos aliados na Normandia, abre a primeira porta muito de mansinho, entra, abaixa-se e espreita por debaixo da segunda, vendo as calcinhas da menina junto aos tornozelos. O rapaz perturbou-se, só aquilo não lhe chegava e tentou ver as quedas de água do rio Zambeze.
A moça ao ver uma cabeça a surdir por debaixo da porta, dá um grito, o “Pica-Pau” bate com a nuca na dita e desata a fugir, por cima dos barrotes de madeira. Alguém o viu, denunciou, e o rapazito tremendo e cheio de medo, lá se apresentou ao seu familiar e patrão.
A notícia correu célere, comentando-se de várias formas, entre elas a humorística e num julgamento sumário e imediato (nessa altura quem é que sabia o que era um processo disciplinar), o “Pica-Pau” foi suspenso por um mês.
Nunca um mês demorou tanto tempo a passar, a malta estava cheia de saudades da presença do rapazote, queríamos perguntar-lhe o que tinha visto, como foi, enfim os pormenores bem desenvolvidos.
Pela socapa, foi nomeada uma comissão para quando do seu regresso, se fizesse o acolhimento de boas vindas e chegado o dia fatal, ele, coitado, com um sorriso murcho e as faces vermelhas, recusou um lindo ramo de ortigas, salpicada com azedas (que dá uma flor amarela) embrulhadas em papel celofane com uma fita de serapilheira com a inscrição de “Prémio Nobel da Espreita-dela”. Evidentemente saltou para a ribalta outra bronca e desta vez o julgamento sumário teve como acusados este vosso amigo que assina Zé do Cão e o Manuel José, com a suspensão de 15 dias a cada um.
Naquela altura, que nos importava a nós sermos suspensos 15, 30 ou 60 dias se ao menos tivéssemos visto a barragem do Limpopo. O certo, certo, é que nem vimos a floresta africana.

12.10.07

Colhões de Molas

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26 de Junho de 1968, já não recordo o dia da semana, mas Sábado ou Domingo garanto que não era com certeza.
Tinha o hábito de diariamente comprar o jornal “Diário de Notícias” e lia-o de fio a pavio, inclusive os anúncios.
Dava-me prazer fazer esta leitura e chamavam-me a atenção alguns que pela originalidade, dava para fazer trocadilhos.
A batatada no ultramar seguia aquecida e não se antevia fim à vista.
Vejam só, que naquela altura uma viagem à Áustria, de autocarro de 19 dias, acompanhada de Lisboa a Lisboa, custava tudo incluído 8.830$00 – Wagons-Lits Cook
Que, na véspera, na Feira de S. João o José Falcão tinha recebido a alternativa na praça de touros de Badajoz, que tinha sido inaugurada a nova fábrica da Imperial Margarina, tendo sido investidos 130 mil contos e que o desinfectante ZAP, enérgico, activo e eficaz, não deixava os galináceos contaminar-se (fazia falta agora).
Na página de necrologia, vinham publicados um montão de participações de falecimentos de Zulmira, Malhou, Torcato, Fidalgo e outros, gente que nunca tinham tido a oportunidade de ver o seu nome no jornal, partiam para o céu dos pardais, prestando-lhe assim a família derradeira homenagem, satisfazendo o desejo que em alguns até já tinha adormecido.
E então depara-se-me este anúncio. “COLHÕES DE MOLAS”. Próteses dentárias para as mãos, braços, pernas, pés e até pénis, já tinha conhecimento, agora para colhões e de molas, deixou-me apreensivo. Indicava também que tinham garantia por 10 anos, o que não era mau para a época, mas em 10 anos os gajos não enferrujariam? É que a urina ás vezes escorre para lá e o ácido corrói.
Dois dias depois, pressupondo que o negócio já corria com a “naviarra” a velas desfraldadas, decido-me, pego no telefone e ligo para o numero que lá vinha indicado, perguntando se era ali que vendiam colhões de molas, garantidos por 10 anos.
Extremamente pronta uma voz feminina responde-me, “vá pró caralho seu filho duma grande puta, que os únicos colhões que há nesta casa são os do meu marido, que não são de molas e estão garantidos até ao fim da vida e que nunca vendemos aqui no estabelecimento, colhões de molas nem molas prós colhões.”
Pensei com os meus… ões:
Quem me manda a mim fazer trocadálhos dos carilhos...

9.10.07

Carapaus fritos

O meu amigo J.J. foi à inspecção militar ficou apurado e assentou praça no Quartel de Elvas.
Ir aos confins do Alentejo em 1954 era uma aventura das inolvidáveis, e ainda pior se utiliza-se as camionetas de passageiros, que saíam de Cacilhas, dado que paravam por todas as terras que se lhe deparavam e era festa na aldeia, sendo a única distracção ali existente. Ela levava o saco do correio, as embalagens de encomendas e acima de tudo o desejo de alguém da terra que anunciava a chegada e depois resolvia não ir deixando os familiares e amigos em ansiedade e agitação nervosa.
Na maior parte das vezes 2 a 3 furos pelo caminho, que o desgraçado do motorista e o cobrador tinham de reparar; era enfim uma quantidade de coisas que hoje seriam consideradas anormais, mas que na época era o pão nosso de cada dia.
Uns dias antes da partida, o J.J., rapaz pobre e com dificuldades, andou a visitar todos os seus amigos e familiares. A solidariedade entre os pobres foi sempre coisa boas dos portugueses, tendo o recruta arranjado de dádivas qualquer coisa como 2.000$00.
A irreverência da juventude faz milagres, e o nosso J.J., não esteve com meias medidas, assim que chegou ao Quartel tratou de meter os papeis para se desarranchar. Porquê ficar a comer comida da tropa se tinha 2.000$00 no bolso, era o que faltava, pobre sim, mas tanto não.
Foi chamado ao oficial que daria o aval ao seu pedido, militar de pelo na venta que tratou de avisar o soldado tal e tal que se amanhã quisesse voltar, não o poderia fazer.
Qual quê, tranquilo, porque o J.J. era homem para se aguentar e a tropa não era para toda a vida (na realidade aguentou-se e de que maneira).
Tratou de fazer pesquisa para saber onde em Elvas se comia bem e barato e passou a frequentar uma tasca (agora tasca, que naquela altura era denominada casa de pasto) onde comia conforme os seus desejos e à descrição.
Melhor não poderia haver e até dava para brincar com os colegas de formatura. Claro que os dois mil foram-se esgotando, e o J.J. deixou de ir a casa ver a família. Depois, quando ia almoçar, comia desmesuradamente para compensar o jantar que passou a ficar em branco e finalmente esgotados todos os recursos pedia aos colegas para lhe trazem algo do refeitório do quartel. Quando alguém da família lhe enviava uma carta acompanhada de 100$00, era certo e sabido que havia festa na Cidade e só não ia rezar à patrona do burgo, porque não era homem dado a essas coisas.
Fui visitá-lo, era bom e grande amigo, teve o cuidado de não contar as dificuldades que passava, convidei-o para almoçar e levou-me ao tal restaurante, onde como cliente já era conhecido.
Era inverno, Elvas é Cidade do interior, o frio enregelava o nariz e eu com a samarra bem aconchegada seguia atrás do J.J., já que ele conhecia o caminho e eu não.
As botas da tropa batiam na calçada apressadamente e o capote do militar, coçadíssimo, abanava.
O Gerente, pessoa bonacheirona, perguntou se ele tinha estado doente, em virtude de há uns dias que não aparecia.
Sentamo-nos e o menu era único: jarrito de vinho, pão alentejano (que saudades) arroz de grelos e carapaus fritos, à discrição.
O J. J. comeu, comeu até não poder mais e pede nova travessa de carapaus fritos enquanto eu utilizava o mictório.
Fiquei embasbacado com a rapidez com que comeu aqueles últimos carapaus que deviam estar deliciosos, como hoje já não há. A travessa estava vazia e eu nem sequer lhes tinha visto a cor.
Mais dois dedos de conversa para saborear os últimos momentos da minha visita, chegando a hora de ir embora.
Fui ao balcão pagar, atravesso o estabelecimento à frente com o J.J. a seguir-me e sinto algo que me batia nas pernas, olho para trás ao mesmo tempo que o dono da casa observava o espectáculo, e vejo isto.
O J.J. tinha metido a ultima travessa dos carapaus fritos nos bolsos do capote. Estes, como estavam rotos, deixam sair os ditos tesos da fritura, que lhe batiam nas botas e saltavam à sua frente. Não cheguei a dizer nada, porque o comerciante saiu-se com esta: Oh!.. Sr. J.J. Atão tá a fazeri uma figura triste, atão se me tivessi dito alguma coiisa, eu nãm lhe dava os carapaus?
Ao que o meu amigo responde: - Porra, você era capaz de dar uma vez, decerto não ia dar-me todos os dias.
Os outros clientes desatam a rir, o dono do estabelecimento também e eu nunca mais posso esquecer cena tão cómico-dramática ao mesmo tempo.
Sempre que vejo um militar fardado, olho para as suas botas a ver se delas saltam carapaus fritos.

3.10.07

Consulta em Bragança

A Carlota era uma senhora casada, mãe de 6 filhos, quatro rapazes e duas raparigas que nasceu numa casita, perto de Quintanilha, Distrito de Bragança que os seus progenitores mandaram construir numa pequena quintinha que já tinha sido dos seus avós e lhe foi parar às mãos por heranças sucessivas. Não sabia ler nem escrever, tal como seu marido, dedicando-se ambos ao amanho do campo, que lhes ocupava todas as 24 horas do dia, exceptuando umas 3 ou 4 para dormir.
Os filhotes frequentaram a escola primária da aldeia próxima, até à 4ª classe, e mesmo assim por obrigação da sua presença, não fosse a segurança social cortar-lhes o abono de família. Ajudavam portanto os pais na lida da agricultura.
Uns porcos e umas ovelhas eram o complemento do sustento daquela família, que viveu sempre com muita labuta e dificuldades. A criançada, apresentava-se sempre na escola com a roupa lavada, os sapatos com algumas “tombas” e às vezes com a lamparina acesa no nariz, mais por sua culpa que dos pais. Nessas ocasiões passavam com a manga da bata escolar pelas ventas, ficando a manga com a matéria agarrada, até secar, que a mãe quando a lavava se via aflita para a retirar.
Uma das meninas, a mais velha, quando fez 14 anos foi despachada por recomendação para casa duma família em Lisboa que tratou de lhe arranjar sítio onde passou a servir e portanto a ganhar qualquer coisa. Era a época das “sopeiras” que as patroas exploravam miseravelmente a troco da sopa e de um pequeno ordenado, que na maior parte dos casos nunca pagavam. Todavia orgulhavam-se de ter empregada de avental e touca, quando as acompanhavam ao mercado da 24 de Julho e vinham com a alcofa a abarrotar de compras.
Os anos foram passando e o Carlos, assim se chamava o consorte da Carlota, não obstante estar mais velho e cansado do trabalho rude que sempre teve, gostava de cumprir com as suas obrigações de marido, não deixando a esposa descansada. A mulher vivia numa angústia tremenda com receio de ter filho, numa altura em que os outros já eram homens.
Soube, numa das idas mensais a Quintanilha que no Posto da Caixa, em Bragança, que havia consultas de Planeamento Familiar, para não ter filhos (foi assim que lhe disseram). Aconselhou-se com o marido e lá partiu um dia, muito cedo, com o seu xaile antigo mas novo por falta de uso, e quando chegou o movimento já era grande frente ao guiché.
O nervoso miudinho apoderou-se-lhe, e a vergonha pela marcação da consulta fazia-lhe tremer as pernas. Esqueceu-se completamente de como se chamava a consulta, sabendo somente para que servia e qual a sua origem.
Quando a empregada lhe pergunta que consulta desejava, a Carlota corou, a saliva secou-se-lhe, tendo balbuciado “Quero uma consulta para Fodiamento no ar”.
Teve a consulta, voltou a casa encantada com as explicações que a Médica lhe deu, só o marido nunca foi capaz de a possuir no ar, e até hoje nunca entendeu que raio de posição seria aquela, admitindo que eram esquisitices da vida moderna.

20.9.07


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Na Cidade de Setúbal e na estrada que a liga a Palmela, existia até há bem pouco tempo uns cartazes publicitários, anunciando a existência de "anal anestésico" à venda em determinado sex-shop. Na ocasião fiquei boquiaberto e pensei: o mundo tem evoluído a tal velocidade, que se torna difícil a um "velho jarreta", como eu, acompanhá-lo. Depois, com o tempo fui-me habituando (afinal é tudo uma questão de hábito) e agora verifico quanto é oportuno e necessário aqueles anúncios. Senão vejamos: nunca em qualquer outra ocasião o povo português foi tão "comido" como agora. É a gasolina que não pára de subir, depois da liberalização dos preços, são nos super-mercados o leve três e pague dois, com os mesmos produtos mais baratos se levar três e sem estarem sujeito a qualquer promoção, são os impostos que nos angustiam, é a EDP com as facturas bimestrais e os débitos por estimativa, são os apitos dourados, os dirigentes do futebol com os ordenados em dia e os jogadores a passarem fome, a pedofilia na Casa Pia, os vencimentos a aumentar 1,5% quando a inflação chega aos 13, 14 e 15%, é a vergonha da Justiça, do novo imposto sobre o selo automóvel, são os Engs que não são Engs. Enfim... é tanta, tanta, tanta coisa, sem o uso de qualquer "lubrificante anestésico" que, sinceramente, já temos o "traseiro" dorido para toda a vida. Antigamente, no tempo dos nossos bisavós, o lubrificante usual era o sebo, que também servia para besuntar botas e os eixos das carroças, no dos nossos avós imperava a massa consistente, no meu, recordo o filme o último "Tango em Paris" onde o actor Marlon Brando, ao fazer sexo anal com a sua comparsa, usou a margarina Vaqueiro, que na altura era a única que tornava tudo mais apetitoso. Mudam os tempos, mudam os processos, mudam as tecnologias, e aí está a oportunidade do anúncio para gáudio e satisfação deste povo, que assim vê minorar o sofrimento da sua sodomização. Prevejo que virá o tempo em que todas aquelas entidades que ao longo dos anos nos têm "papado", nos enviem a acompanhar as suas más notícias, uma ampola de dose individual daquele produto, no sentido de as aceitarmos com mais satisfação e tranquilidade. Todavia, e enquanto não chegar esse dia, aconselho à juventude, que anda sempre sem "cheta" no bolso, a usar dois dedos juntinhos (o indicador e médio) da mão direita, colocar-lhe em cima uma boa cuspidela, apontem e já está... porque sendo caseiro tem outro sabor, é ecológico e não causa poluição. Ah... já me esquecia, com a mão esquerda afastem as moscas, que naquelas ocasiões são extremamente incómodas.

31.8.07

Merda em dia de Futebol

Fim da década dos anos 50, Margem Sul, Cruz de Pau – Amora, sócio do Sporting com lugar cativo, possuidor de uma moto Triumph 350 cilindrada. Um luxo para a época. Quando o frio apertava usava por debaixo das calças umas ceroulas com elástico a apertar em baixo em cada uma das pernas. Hoje, pelo menos nos joelhos, não sofro de reumático. Se calhar tenho-o na tola, mas creio que não se nota muito é o que dizem.
Inverno, domingo, tempo ameaçador de chuva, cedo já tinha caído uns pingos. Leão convicto, preparo-me para ir até Alvalade assistir a um jogo de futebol entre o Sporting-Porto para a taça de Portugal, que nessa altura realizava-se em duas mãos. No Porto, o Sporting já tinha sido bem aviado com 2-0. Havia portanto que recuperar e superar, para seguir em frente.
Faço todo o ritual domingueiro dos doentes do futebol, sendo entre outros o de almoçar mais cedo, visto ceroulas, calças, samarra, pego na mota e nesse momento começa a chover, forte. Os planos são alterados, guardo a moto, substituo a samarra por uma gabardina de fazenda e dirijo-me para a paragem do autocarro que nessa época chamavam de camioneta da carreira, com destino a Cacilhas, já que nessa altura não havia ainda a ponte sobre o Tejo.
Na ânsia de não chegar tarde, apanho o transporte que vem de Setúbal, mais rápido e um pouco mais caro. Enquanto esperava senti um pequeno sinal de mal estar causado por uma cólica intestinal, mas nada que um apertão anal não resolvesse momentaneamente.
Ao entrar na já referida camioneta pela porta de trás, talvez o gesto de subir, deveria ter feito com que as tripas mudassem de posição e começo a mudar de cor. O único lugar vago, era no último banco por sinal corrido e que leva 5 pessoas. O cobrador avança logo para mim e mesmo antes de me sentar dá-me o bilhete que pago, fazendo simultaneamente uma descarga intestinal que só não chegou ao chão graças ao tal elástico que apertava as ceroulas às pernas.
O efeito da convulsão, deveria ter ficado abafado com o barulho que o transporte fazia, mas o cheiro começou a fazer os seus efeitos imediatamente. Na minha mão espalmada um montão de moedas esperavam que o cobrador se aproveitasse para trocar por nota, em virtude da falta de moedas pequenas que havia e entretanto eu já tinha puxado aquele fio de cabedal que fazia tocar a campainha colocado no tecto para que a viatura parasse na próxima paragem. Um passageiro incomodado alertou o cobrador para me despachar, em virtude de eu estar todo cagado.
Paguei viagem na Cruz para a Cacilhas, mas por este incidente, fiquei-me pelo Muxito, que para quem não conhece é qualquer coisa como 800 metros a 1km.
Regresso a casa não tão ligeiro quanto desejava, lavo-me e mudo de roupa, entre ela novas ceroulas e lá parto novamente em busca de um transporte similar que me levasse a Cacilhas, barco, autocarro de 2 andares e eis-me chegado a Alvalade, tendo durante todo o percurso os malditos intestinos dado mais 2 ou 3 avisos, de chegada de novo parto fecal. Enfim lá se aguentou e portanto afoito, ocupei o meu lugar naquele estádio que tanto adorava.
Ao tempo, a equipa dos violinos já estava desfalcada de Peyroteu, mas era sem sombra de dúvida a melhor de Portugal. Todavia, no futebol como em tudo na vida as coisas nem sempre correm bem e o que é certo é que ao intervalo o resultado estava em 0-2, que com os 2 do Domingo anterior o meu clube perdia por 4-0. Motivo para euforias não havia, os intestinos lá se iam aguentando e o ânus não abria.
Na segunda parte o Jesus Correia passa, como era habitual, para avançado centro e a faltar 3 ou 4 minutos para acabar o jogo o resultado já estava em 3-4. Quem é amante de futebol sabe quanto se vibra com os golos, podem portanto avaliar o sofrimento por que passei sem poder dar asas à minha alegria a festejar os da minha equipa com medo de uma golada mais atrevida sair do meu traseiro.
Até que, num rasgo genial daqueles leões indomáveis, Albano em cima da hora faz 4-4. A multidão entra em delírio e este vosso amigo levanta-se, e ali em pleno estádio faz um despejo intestinal, seguido de nova leva, desta vez ainda mais bem líquida, borrando badanas, fralda da camisa e peúgas, não chegando aos sapatos graças aos elásticos milagrosos que me minha mãe tinha colocado nas ceroulas, que jamais posso esquecer.
Dirigi-me a um dos sanitários do campo, papel higiénico nem vê-lo, despi, e despedi-me das ceroulas, da camisa, das peúgas deixando-as lá, limpei-me a umas páginas do jornal “Mundo Desportivo” do dia anterior, e já com a gabardina apertada até ao pescoço e a dignidade possível livrei-me de fazer de volta todo o caminho a pé, porquanto seria impossível assim, alguém aceitar a minha presença naquele estado.
Para os leões, informo que a desforra do Sporting-Porto foi em Coimbra a uma quarta ou quinta-feira, tendo o nosso clube eliminado o F.C. Pê por 5-2, com 0-2 ao intervalo.