30.3.09

O Enfermeiro “Marmelada”

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Era velho, simpático, falador e trocista. O Zé trabalhou num escritório de uma empresa 16 anos, entre 50/66, ano em que foi inaugurada a ponte Salazar, hoje com outro nome.
Nessa empresa, trabalhava por conta de uma segurada o enfermeiro a quem todos chamavam “Marmelada”, mas cujo nome era Silva. Portanto já estão a imaginar que o tratamento era assim: Cara a cara, Sr. Silva para a direita, Sr. Silva para a esquerda e pela porta baixa; ó “Marmelada”, fazendo com que afinasse 30 vezes por dia. A sua arma e como vingança, era colocar alcunhas a todos que lhe chamavam “Marmelada”.
Na conformidade, não havia ninguém na empresa que não tivesse alcunha. Era “Olho de Boi, Borda de Água, Cartucheira, Esparguete, Pica Bois, Chanfrado, etc., etc., etc.”
O seu vencimento era fraquito, mas lá ia dando para viver. Quando fazia anos, normalmente de minha iniciativa fazíamos uma pedinchinha e arranjávamos sempre uns “tustos” para lhe comprar um casaco, camisa, gravata, que com pompa e circunstância levávamos a sua casa, onde vivia só, pois não tinha companheira.
O petisco fazia-o ele no seu gabinete de trabalho e era dia de festa quando a malta o convidava para almoçar.
Um dia, num estabelecimento de vende tudo (os únicos chineses que havia por cá, só vendiam gravatas pelas ruas enfiadas num pau) comprou um fogareiro a petróleo, daqueles que já fiz referencia num outro conto denominado “O Hipólito”, com intuito de fazer a comida mais rapidamente.
Chegou ao trabalho feliz, contente e demonstrava a sua satisfação pela compra que tinha feito.
Acontece que o diabo (Zé) estava sempre à coca, na esperança de aproveitar um deslize do “Marmelada” para lhe fazer uma partida. Mas naquele dia o homem, ou por defesa ou porque notou também a minha satisfação pela sua compra, resolveu quando saía fechar a porta à chave e levar a chave no bolso. As suas saídas eram de pouca duração e limitavam-se as umas voltitas pelas oficinas. Mas numa das suas curtas saídas à casa de banho, o Zé, de corrida veloz, foi-se ao “Hipólito” e esvaziou o petróleo substituindo-o por água.
Quando o Marmelada se preparava para fazer ou aquecer o almoço, por mais que desse à bomba, o “Hipólito” não trabalhava. Até que, já farto de aquecer a cabeça do fogão começou com os seus impropérios contra o tendeiro que lhe vendeu a pequena máquina. O encarregado da oficina de serralharia, desconfiado, visto que conhecia o Zé e do que ele era capaz, abriu a válvula, cheirou e deu o remate final: Sr. Silva, o que está aqui dentro é água.
Como eu parava sempre por perto para me deliciar com as malandrices, o “Marmelada” olhou para mim e desabafou em voz alta.
Filho da puta de “Esparguete” (era esta a alcunha com que ele me tinha baptizado), se um dia te pego nem sabes o que te faço.
A gargalhada que se seguia acalmava o “engatado” e a partir daí o Zé estava pronto para outra.
Noutro dia pela manhã, e após o “Marmelada” ter feito uma cafeteira de café com que aquecia o seu estômago em dias de frio, o Zé, apanhando-o distraído encheu-lhe a cafeteira de serradura. Quando se preparava para beber a “mistela”, reconhecia que mais uma vez tinha caído na esparrela.
Isto foi somente uma pequena amostra das partidas que lhe fiz. Foram tantas, tantas e tão variadas, que de algumas agora até sinto remorsos.
Todavia, garanto-vos não havia ninguém que fosse mais seu amigo do que eu, mas quando eu estava por perto, o “Marmelada” sentia-se estranho, era como se visse o diabo em figura de gente.
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16.3.09

João Pião

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O Zé tinha 7/8 anos e já nessa altura tinha ferrado no corpo o gosto pela partidas e a vontade de brincar. Algumas delas já foram aqui contadas, outras, se a memória não me falhar e tiverem paciência para aturar os meus devaneios, continuarei aqui a descrevê-las.
O meu avô era homem do campo. Tinha várias quintas, dedicando-se por isso à lavoura. A minha avó, segundo a minha óptica, era a máquina de ter filhos.
Naquele tempo apenas existiam umas charruas rudimentares, puxadas por mulas para mexer a terra e a mão-de-obra disputava-se entre os agricultores. Portanto, dono de terras com mulher saudável e fértil, era certo e sabido que… era casa cheia de catraios.
Na casa dos meus avós paternos, não foram nada comedidos e foram pais somente de… 18!
Participo-lhes desde já que não bateram o recorde, pois os meus avós maternos tiveram de dar comer a 19. Eram outros tempos, é verdade, mas sempre foram outros tempos para tudo.
Tive necessidade de dar esta explicação prévia, dado que a história se vai desenrolar numa das quintas do meu avô, com um filho de um dos seus trabalhadores.
Tiago foi contratado para trabalhar de sol a sol, como cavador. Era homem corpulento e mestre na arte de mexer a enxada. Praticamente levava todos os dias o seu filho (de nome Pião e da mesma idade que eu) lá para a quinta, com a obrigação de pôr comida nas manjedoiras dos animais. Como não eram poucos, tinha muito que fazer, dando-lhe eu muitas vezes ajuda, para mais depressa ficar livre e darmos asas às nossas brincadeiras.
Comia comigo e minha avó, na cozinha grande, e no fim de cada semana o meu avó dava-lhe uns “tustos”, que seriam depois religiosamente entregues à sua mãe.
Nunca soube se Pião era mesmo nome da família ou se era alcunha. Todavia, confirmo que pela sua ligeireza, vivacidade e esperteza, o moço era um autêntico pião. Calçado, nunca tinha entrado nos seus pés, tão-pouco alguma vez ouvi qualquer lamúria ou queixa por esse facto. Montava o jerico com destreza e que sempre acariciou desde que começou a ir lá para a quinta. O asno estava na flor da idade e o João Pião era o único que o montava, coisa que fazia com máximo dos prazeres. Bastava bater com os seus calcanhares descalços na barriga do animal e este seguia indolente, devagar, devagarinho a caminho do local habitual e seu conhecido. Nunca o vi correr e mesmo assim nunca tive tentação de o montar. Quantas o vezes o Pião júnior me convidou e aliciou para eu ir com ele, para imitarmos os cowboys.
Um dia, o meu avô foi ao mercado à Moita do Ribatejo e trouxe umas botas pequenas, com cardas, para oferecer ao Pião. Que contente estava ele! Correu campo fora com elas na mão, para mostrar a seu pai a oferta que o patrão Manel lhe tinha oferecido. Minha avô, chamou-o e, mandando-o lavar os pés, deu-lhe uma peúgas minhas para completar a satisfação do petiz, pois era oportunidade de se estrear as botas imediatamente.
Enquanto o nosso Pião lavou os pés e calçou as meias, eu, na arrecadação da quinta brinquei com as botas.
Poucos minutos depois, aí estava o João Pião, qual “toutinegra” correndo campo fora com as botas nos pés.
Chegou a hora de montar o burro, para fazer a sua costumada e maçadora viagem. O Pião salta-lhe para cima, com a língua dá aquele estalinho característico ao animal para se pôr em marcha, bate-lhe com os calcanhares das botas na barriga e… pasmem-se!
O burro indolente, preguiçoso no andar, desata a correr em tal velocidade, que nada o fazia parar. O Pião bem o mandava parar, batia com a língua, acariciava-lhe a barriga com os calcanhares das botas, mas qual quê, quanto mais lhe batia com as botas mais corria e até dava coices à mistura, nada fazendo prever quando pararia. Não fosse ele tão especialista na arte de montar e seria cuspido de cima do animal. Acho que a correria só parou quando, ao passar junto a uns fardos de feno, o Pião resolveu atirar-se do burro abaixo. Estavam todos na quinta boquiabertos a apreciaram esta corrida do “Porsche de Orelhas” e admirados com tal façanha. Um animal tão dócil, tão meigo e faz-lhe uma partida daquelas!
O Pião, com os pés em brasa, pois como contei era primeira vez que se tinha calçado, resolveu tirar as botas dos pés. Sentou-se e, ao pôr a mão atrás no calcanhar para as descalçar, picou uma das mãos, ficando a saber nessa ocasião por que motivo a velocidade do burro tinha sido aquela, e creio até ser capaz de fazer concorrência com o Alfa Pendular.
É que, enquanto o João Pião lavou os pés e calçou as meias, eu preguei em cada bota um prego de sapateiro, para servir de esporas quando montasse o burro.
Claro que não esperava que o animal voasse como um “cavalo alado”, mas ao ver a aflição do Pião e aquela correria desenfreada, achei por bem dar corda aos meus sapatos e dar o salto para junto da minha protectora (mãe Júlia), que estava numa das outras quintas ali perto.
O meu avô bem me procurou, pois queria dar-me o correctivo em presença dos assistentes da corrida do fórmula “B”, só que o Zé fintou-o e teve uns largos dias sem lhe aparecer.
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2.3.09

Saramago - Carpinteiro

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Em 1976, o Zé trabalhava numa empresa cujos armazéns se situavam no local onde mais tarde se realizou a Expo 98, tendo por isso desaparecido.
Em seu redor havia mais armazéns e num deles estava instalada uma carpintaria, tendo sido aí que conheci o João Saramago, homem já bem idoso com experiência de vida bem vivida, mas cuja estrelinha da sorte nunca lhe bateu à porta.
Artífice de primeira, na arte de entalhar. Sempre bem disposto, mesmo quando as adversidades lhe batiam à porta. Nunca soube ao certo o local da sua residência, já que tão depressa dizia que morava numa barraca no Vale de Santo António, como num apartamento com todos os requisitos modernos nas Olaias, com cores berrantes “tipo Taveira” (este Taveira… também saiu um passarão…).
Admito que não falava verdade, inclinando-me mais para a primeira, pois o Saramago tinha sempre um sorriso maroto quando falava no “albergue”.
Certo dia entra-me porta dentro e contou-me que tinha respondido a um anúncio de convívio e tinha tomado a liberdade de dar o número de telefone do meu escritório…
Estava aflito e esperava uma reacção minha pela negativa. Coitado do Saramago, não conhecia o meu coração e do que o Zé seria capaz. Pu-lo à vontade e prontifiquei-me para dar toda a colaboração no arranjinho. Não queria que a sua Filomena soubesse de nada, mas reconhecia que estava a meter-se em entalanço; para que queria ele um encosto se se mijava todo, confessou-me, dando uma valente gargalhada, pois sofria de incontinência.
Talvez ela fosse rica e então queria lá saber da Filomena para alguma coisa; já lhe tinha aturado tantas, que ao menos assim deixava-a livre até ao fim da vida.
Eu delirava com os seus comentários e combinamos que se a senhora do anúncio lhe telefonasse e ele não estivesse, eu atenderia, aldrabava como podia e logo se veria onde paravam as modas.
Selamos o acordo com um aperto de mão e a promessa de um almoço bem regado, num restaurante rasca, junto ao mercado da 24 de Julho, nesta linda cidade de Lisboa.
Três ou quatro dias depois o Saramago estava triste, pesaroso e enfadonho. Segundo ele, a senhora pendurou a carta que ele lhe escreveu, num arame que algumas famílias usam na casa de banho e cujo destino todos sabemos qual é.
Que não, que tenha paciência, porque decerto a senhora deve estar a fazer uma selecção e só depois disso entrará em contacto consigo, alvitrei eu já a matutar na partida que se ia seguir.
Primeiro, entro em contacto com uma colega que trabalhava nos nossos escritórios da Praça da Alegria, precisamente por cima do Maxime. Conto-lhe a história e peço a sua colaboração, para falar com o Saramago. A seguir, digo a este que uma senhora, mulher talvez aí de 55/60 anos, bem vestida com um grande casacão de peles, tinha estado ali no escritório a perguntar por ele, dizendo que falaria amanhã por voltas das 16 horas, pois desejava conhecê-lo.
Naquela ocasião confirmei que na realidade todos nós somos duas vezes crianças e o Saramago estava tão, mas tão contente, que o mijo lhe corria pernas abaixo sem ele dar por isso. E no outro dia, pela hora aprazada, lá recebe um telefonema, cheio de melaço e promessas para se conhecerem pessoalmente.
Perguntei-lhe onde levaria a senhora a almoçar. Respondeu-me: sei lá, tomara eu ter dinheiro para mim. Fiz-lhe ver que ela deveria estar acostumada a frequentar o Tavares Rico e que ele tinha de ir bem arranjado e engravatado para fazer boa figura.
Chegou o dia… Encontro o Saramago à porta da casa da Sorte no Rossio. Diz em casa, à Filomena, que vai a um funeral de um amigo, para justificar a necessidade de vestir o melhor fatinho que tinha; põe gravata preta, metendo às escondidas outra mais garrida dentro do bolso.
Passa pelo escritório para eu confirmar se estava no «´sconforme», muda de gravata e alvitrei que uma flor na lapela era coisa indispensável.
Fiz de seu motorista e fomos à Praça da Alegria, para que a minha colega o conhecesse; regou-o com perfume, no sentido até de disfarçar o cheiro que andava sempre atrás dele fruto da sua incontinência.
Partimo-nos a rir e pretendi acabar ali mesmo com a “cegada”, mas a minha colega lembrou-me que não seria oportuno.
Chovia copiosamente, mas o Saramago estava com pedalada invulgar e em vez de ficar à esquina da porta na Casa da Sorte (casa que vende lotaria), meteu-se dentro duma barraca das obras que a Carris estava a fazer mesmo ali em frente, e diz-me assim:
- Vamos lá ver qual vai ser a minha sorte, ao menos que me saia a aproximação.
Coitado do Saramago! Bem podia esperar sentado. Lá se foi a ilusão de mudar de vida e a Filomena teve de o aturar até ao resto dos seus dias.
Não tive coragem para lhe contar que tinha sido uma partida.
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