29.3.10

A JUSTIÇA

Fim do ano de mil novecentos e oitenta e dois. O Zé, mais a sua “Dona” e os dois pequenitos, preparavam-se para partir numa mudança de ares que demorou vinte anos. Mudança radical de emprego, mudança da linha do Estoril para a cidade mais importante da província do Minho. Usos e costumes diferentes ao que estávamos habituados.
Todavia, para juntar a tantas outras historias que já tive na vida, aconteceu-me esta, que durante muito tempo fui desviando do pensamento para não a contar. Faço-o hoje, não pela graça que o caso possa ter, mas com intuito de dar mais uma achega ao problema das injustiças que se fazem em Portugal.
A “Dona” trabalhava no Hospital de Santa Cruz na parte da manhã e de tarde na Siderurgia Nacional, em Aldeia de Paio Pires, empresa que já se finou e onde mais de seis mil trabalhadores ganhavam o pão de cada dia. É com orgulho que digo que era a única trabalhadora da sua especialidade (lugar que estava destinado a uma familiar da Administração) merecidamente ganho por ela em concurso.
Alguns dias da semana eu ficava com o mais velhinho (dois anos) e ela levava o pequenito na alcofinha, ficando algumas noites em casa dos seus pais.
Aconteceu que o primeiro, ou por minha falta de jeito ou por não saber tratar convenientemente, teve uma diarreia que me atrapalhou emocionalmente, tendo necessidade de às duas horas da manhã levá-lo aos cuidados da mamã, que estava em casa dos seus pais na outra margem do Tejo.
Depois foi uma corrida à povoação de Arrentela, comprar medicamentos na única farmácia em serviço naquela área.
O farmacêutico demorou tanto tempo a atender-me que me desesperou, tirando na minha presença os preços das caixas e voltando a colocá-los, quando lhe chamei a atenção para o facto de não beneficiar de qualquer desconto, já que a receita não era da Segurança Social. Fez a conta na receita e, quando cheguei a casa, comentei que os medicamentos eram caros. A “Dona” pega nas caixas e diz-me que os preços tinham sido alterados. Efectivamente os preços não eram aqueles, confrontei-os noutra farmácia em Lisboa, tendo ido apresentar queixa no departamento das actividades económicas, sito na Avenida Duque D’Ávila.
Foi aberto processo e, decorridos 3 meses, fui inquirido para saberem como tinha decorrido o caso; assinei e fiquei à espera. Decorridos outra vez mais 3 ou 4 meses, sou chamando novamente, inquirindo-me de novo para confirmarem se mantinha as minhas declarações. Aí, não gostei, tendo perguntado se tinham ouvido o farmacêutico. Responderam-me que sim e que ele confirmou que tinha feito de propósito. Nessa altura não resisti e perguntei para que me chamavam se já estava tudo mais do que esclarecido.
Fiquei novamente sentado à espera da resolução, mas chegou a hora da mudança para o Norte. Por esse facto, escrevi uma carta aos serviços atrás descritos, indicado o respectivo número de processo e a minha nova morada.
Recebi nessa altura a visita de 6 (seis) agentes da delegação da área local, para inquirirem o porquê daquela minha comunicação. Estava a ficar farto de tanta (in)competência.
Quatro ou cinco anos depois, entrei em contacto com os serviços das Actividades Económicas para saber como estaria o assunto e tenho conhecimento de que com a entrada de sua Excelência, O Sr. Dr. Mário Soares, para Presidente da Republica, o processo tinha sido amnistiado.
Perguntei, em desabafo, se custava muito darem a informação ao reclamante da resolução do processo e o seu consequentemente arquivamento.
Esclareceram-me pelo telefone que se pretendesse receber o que legitimamente me pertencia, teria de o fazer através do tribunal.
Se acredito em Justiça? Não, caros amigos, não acredito.
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15.3.10

Made in Portugal


Texto de autor desconhecido

O Zé, depois de dormir numa almofada (made in Egipt) começou o dia bem cedo, acordado pelo despertador (made in Japan) às 7 da manhã.
Depois de um banho com sabonete (made in France), e enquanto o café (importado da Colômbia) misturado com leite (vindo das Astúrias) aquecia numa máquina (made in Chech Republic), barbeou-se com a máquina eléctrica (made in China).
Vestiu uma camisa (made in Sri Lanka), jeans de marca (made in Singapure) e um relógio de bolso (made in Swiss).
Depois preparou as torradas de trigo (produced in USA) na sua torradeira (made in Germany), e enquanto tomava o café numa chávena (made in Spain), pegou na máquina de calcular (made in Koreia) para ver quanto é que poderia gastar nesse dia. Consultou a internet no seu computador (made in Thailand) para ver as previsões meteorológicas.
Depois de ouvir as notícias pela rádio (made in India), bebeu ainda um sumo de laranja (produced in Israel), entrou no carro Volvo (made in Sweden) e continuou à procura de emprego.
Ao fim de mais um dia frustrante, com muitos contactos feitos através do seu telemóvel (made in Finland), e após comer uma pizza (made in Italy), o Zé decidiu relaxar por uns instantes.
Calçou suas sandálias (made in Brazil), sentou-se num sofá (made in Denmark) serviu-se de um copo de vinho (produce in Chile), ligou a TV ( made in Indonesia) e pôs-se a pensar porque é que não conseguia encontrar um emprego em Portugal.
Chamo a esclarecida atenção dos meus visitantes, para informar que o barro e a arte de fazer a família, que ilustra este texto, é Made in Caldas da Rainha.
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1.3.10

O velório

Reconheço que alguns dos meus contos parecem irreais. Todavia, são mesmo verdadeiros…
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No sentido de ajudar os amigos que visitam este blogue, convido-os a fazer primeiramente a leitura do meu conto de Onze de Fevereiro de Dois mil e Oito, denominado “Préstimos à Disposição”, em virtude de alguns intervenientes serem os mesmos e haver alguma ligação entre aquele e este conto.
Poucos anos mais tarde, o pai do moço acidentado, que esteve entre a vida e a morte por inalação de gás queimado, sofreu um rude golpe com o falecimento de seu progenitor.
A empresa parou a actividade durante dois dias, a consternação foi geral e as honras fúnebres nos tempos mais próximos mereceram comentários pela sua opulência, tendo até o carro de transporte sido puxado por um “gato-pingado” e outro atrás a empurrar, vestidos à “maneira como mandava a sapatilha” da época.
As casas mortuárias, pelos menos nas aldeias, ainda não estavam na moda e portanto o velório foi feito em casa do defunto. O operariado, os encarregados e os amigos dos amigos dos patrões acorreram em massa e encheram a bandeja com cartões de condolências que a agência funerária colocou à disposição sobre uma pequena mesa para o efeito. E nem o “Bolota” faltou à chamada, não obstante estar sentido pelo desemprego que lhe bateu à porta, por ser altruísta e amigo de servir bem. É que, com a mudança da vereação, a Câmara Municipal convidou-o a recuperar o emprego, pois não são todos os dias que se arranja tão exemplar serviçal.
O caixote de madeira de mogno, com pegas e o Cristo pregado na cruz reluziam. Os paramentos pendurados nas paredes e duas velas em castiçais de prata junto aos pés do defunto, aliado ao profissionalismo da carpideira que quando alguém se aproximava da viuva e lhe dava os sentidos pêsames, chorava um pouco mais alto e referenciava a pouca sorte que tinha batida àquela porta, prestavam ao acto a solenidade conveniente. Em toda a volta daquele quarto, encostadas às paredes, havia cadeiras todas ocupadas por mulheres vestidas de preto e com lenços da mesma cor na cabeça.
Houve no entanto uma coisa que me despertou a atenção, por estranha, e cheguei mesmo a comentar com o “Maneças”. É que a viúva encontrava-se junto à cabeceira do defunto, com uma saia preta rodada, sentada numa cadeira de madeira, mas mais baixa do que as outras.
Enfim, disse eu. Talvez se encontre melhor instalada daquele modo. As horas foram passando e entraram pela noite dentro.
Os presentes começaram a debandar e o filho prontificou-se a ficar ali a noite a acompanhar a mãe, dado não fazer menção de sair da mesma posição. Esta descansou-o, dizendo que toda a gente se ia embora e ela ficava sozinha, não tinha medo porque o defunto não lhe fazia qualquer mal, pois tinha sido sempre um bom marido e não seria agora depois de morto…
Que não, ou ela se ia deitar e descansar ou ele ficava mesmo, a fazer-lhe companhia.
- Olha, filho. Estou muito bem, vai para a tua casa descansadinho da vida, porque eu cá me arranjarei. Nem fazes ideia de como estou bem, nem sabes onde estou sentada e o que faço. Estou aqui muito bem sentadinha na cadeirinha do penico
O Maneças saiu porta fora e nem soube como foi possível aguentar a risada.
O Zé conseguiu-o e guardou todos estes anos o segredo, pois tinha a certeza de que nem o morto batia com a língua nos dentes.