19.12.07

Noite de Natal

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Quem era o Filipe “Ranhoso”? E porque lhe chamavam “Ranhoso”?
Julgo que por esta razão: ouvia dizer que era empregado fabril, mas nunca soube onde trabalhava, vendendo nas horas vagas relógios, canivetes, isqueiros e bugigangas das mais variadas, parecendo assim uma loja dos trezentos ambulante. Já perceberam que o “Ranhoso” não possuía local fixo para vender os artigos, nem ninguém sabia também onde os ia adquirir e, se o alcunharam de “Ranhoso”, devia ser pelo facto de só vender uma ranhozices, mas que faziam as delicias dos compradores e dos que assistiam ao negócio.
Além do mais, a fala do “Ranhoso” era um tanto ou quanto trapalhona e por vezes difícil de perceber. Eu, sinceramente, sentia muitas dificuldades em o entender e às vezes perguntava ao vizinho do lado, como se ele fosse o meu tradutor; todavia dava-me gozo ouvi-lo a explicar a utilidade dos coisas que vendia.
Pelo Natal, as famílias juntam-se e eu, para não fugir à regra, também seguia essa tradição. Habitualmente a noite de Natal é friorenta, cai chuva de molha tolos, está nevoeiro, os pais aproveitam para confirmar aos seus rebentos que o tempo está a adivinhar a chegada do Pai Natal e consequentemente amanhã haverá prenda no seu sapatinho.
Naquela noite, enquanto minha mãe fazia filhós e outras doçarias, e por essas terras do nosso País se assistia à missa do Galo, eu e mais meia dúzia de amigos fomos fazer uma visita à colectividade local, praticamente vazia, estando os dois directores de serviço ansiosos pela saída dos retardatários a fim de fecharem o “estaminé”, pois decerto também quereriam ir para o seio familiar.
A faltar aí 15 ou 20 minutos para a meia noite, aparece o “Ranhoso” com o que lhe restava das entregas feitas naquele fim de dia e há muito encomendadas, para fazer felizes, na manhã do outro dia, os premiados pela visita do Pai Natal, encaminhando-se apressadamente para os sanitários.
Assim que o vimos chegar, preparamo-nos para fazer um pouco de sala e mirar o que ele desta vez trazia.
As retretes daquela colectividade não tinham sanitas, em virtude de ser daquelas que têm um buraco e um local próprio para colocar os pés.
Neste entretanto, a luz eléctrica apagou-se e o “Ranhoso” desata lá de dentro a protestar sem possibilidade de lhe podermos acudir, visto ser um corte geral na povoação. Ele não se calava e todos, que não seriam mais do que 9 ou 10, fomos até aos sanitários. Um dos meus amigos tira do bolso um isqueiro, acende-o e vimos que a coisa estava torta: o “Ranhoso” com o cu à mostra e com uma mão a segurar as calças pelo meio das pernas protestava e apontava para o buraco onde tinha acabado de fazer a sua necessidade fisiológica. Assim que se apanhou com luz, o “Ranhoso” ajoelha-se como se estivesse a fazer penitência, mete o braço por ali abaixo perante a perplexidade dos presentes, enquanto o que tinha o isqueiro na mão queimava o dedos e apagava-o. O Ranhoso levanta-se e, com a sua voz atabalhoada, pede por favor para o acenderem novamente e Deus fez-lhe a vontade, reacendendo-se novamente a luz eléctrica.
E então, para nossa plena satisfação, a cena repete-se com o “Ranhoso” a meter novamente a mão até lá bem em baixo, para pegar...(?) era uma incógnita.
Finalmente, os dedos lá pegam o procurado e o homem levanta-se feliz e contente trazendo uma pistola da marca Star 6,35, sua propriedade, que tinha dentro duma bolsa de cabedal pendurada no sinto das calças e que, ao desapertar o cinto e faltando-lhe a luz, o “Ranhoso” deixou cair no buraco fazendo-lhe a “larada” por cima.
Com todos os assistentes a rir, olho para pistola que mais parecia uma pistola de chocolate, fazendo-me imediatamente lembrar aquelas com que eu quando miúdo brincam no dia de Natal e a comia aos bocados, começando sempre pelo cano e vimos o “Ranhoso”, ainda com as calças na mesma posição, lavar a pistola debaixo da torneira do lavatório; e como o cano daquela estava entupido com matéria estranha ao seu funcionamento, a água quando lá chegou fez ricochete, deixando os óculos e a sua cara a necessitarem de uma desinfecção urgente.
O Pai Natal atarefado a fazer a distribuição dos “presentes” pelo mundo cristão, e talvez aborrecido com a concorrência desleal que o “Ranhoso” lhe fazia, não quis perder a oportunidade de lhe pregar esta partida. Acredito que não se terá apercebido de que o “Ranhoso” estava em apuros e que não seria a altura mais indicada para lhe dar a prenda, até porque ali não existia chaminé nem o sapato engraxado para o efeito.
Os Directores de serviço naquela noite, o “Ranhoso” e os nove ou dez assistentes a esta cena de Noite de Natal e simultaneamente Carnaval da Vida, foram durante muitos meses assunto de conversa na minha aldeia.

4.12.07

O entulho

Vivi com a família 2 décadas numa cidade do Norte, a garagem da nossa casa necessitava de obras, pelo que resolvi meter mãos à obra, contratando um trolha e servente. Parede daqui, colocação de azulejos, pavimento vidrado e até um tanque de cimento, onde se lavava a roupa foi partido, porquanto não fazia falta.
A partir de certa altura era necessário deitar o entulho fora, que à falta de transporte adequado passou a ser problema.
Meus sogros passavam grandes temporadas em nossa companhia e ajudavam-me sempre que precisasse.
Matutei na maneira de me desfazer de tanto entulho e lembrei-me do seguinte:
A Cidade estava permanentemente em obras de construção com aterros e desaterros em toda a parte, pelo que o problema era de fácil resolução. Procuraria um sítio de aterro onde pudesse deitá-lo. Sabia que não é permitido fazê-lo, mas achei que se ficasse no sítio certo, não viria nenhum mal ao mundo e o construtor até agradecia.
Numa carrinha de 2 lugares, carreguei quanto pude e de noite não fui muito longe; bem perto da minha residência havia o local ideal para o efeito.
Todavia, havia algo com que eu não contava. É que em todos os locais onde fomos havia sempre um carro parado, presumivelmente com um parzinho de namorados. Quando já não sabia o que fazer, deparou-se-nos um local estupendo, à entrada de uma azinhaga que não tinha saída, ali mesmo ao lado duma obra. Fiz marcha-atrás e despejei o entulho logo ali à entrada voltei a casa mais 3 vezes e sucessivamente fui fazendo um monte, que passou a montão e finalmente a castelo. O entulho como já disse, era composto de restos de azulejos e mosaicos vidrados, restos de parede e culminava com os bocados do tanque da roupa agarrados ainda aos ferros que lhe davam forma.
Aí, a coisa pôs-se feia, dado que bem lá no fundo da azinhaga se encontrava um carro que, como todos os outros a que já me referi, estava ali no esfreganço. Para evitar discussão acesa, resolvi pirar-me deixando lá o desgraçado que em marcha-atrás só viu o entulho quando lhe encostou. Faço ideia das pragas que o moço rogou ao filho da mãe que o entalou, enquanto retirava o entulho até ter espaço disponível para sair dali com o carro. E imagino, agora já passados anos, como contará a história aos amigos.
Mas acontece que o Zé do Cão ainda não estava totalmente livre do resto do entulho.
Um mês antes, tinha ido com a família a Tenerife; levámos uma mala de viagem de veludo castanho, por sinal muito bonita, só que os bagageiros não se compadeceram da sua boniteza e trataram de colocá-la no porão do avião, por debaixo de mais 300 malas dos outros passageiros, ocasionando que quando a vi, coitada, estava marreca, tinha falta de ar e com a língua de fora. Enfim estava num estado lastimoso e a língua era uma gravata que já saía das suas entranhas. Logo ali, em pleno Aeroporto “Reina Sofia”, resolvemos comprar outra para sua substituição, coisa que não fizemos, pelo que a desgraçada teve de fazer a viagem de retorno sujeita a dar-lhe a trombose final.
Ela, coitada, ali estava na garagem à espera do abandono que lhe daríamos, dando ais à sua vida e sem saber onde iria parar.
Então resolvi enfiar-lhe todo o resto daquelas matérias que foram primas e, para a fechar, já me vi aflito. Quando a pus em pé, quis mete-la na carrinha, mas não fui capaz.
O seu peso ultrapassava largamente as minhas forças. Chamei o meu sogro que não sabia nada daquilo e pedi-lhe que a metesse na carrinha. Coitado, quase que foi ao chão e ela nem se mexeu.
Para a subir, foi necessário eu, meu sogro e meu filho mais velho, para a retirar, olha, era descair e já estava.
Cerca das 22 da noite, meti-me na viatura com o meu sogro ao lado, inquieto e desejoso de saber qual seria o meu pensamento, que digo de verdade até aquela altura não era nenhum, mas ao passar por uma paragem de autocarro lembrei-me: e se eu a deixasse aqui? Meu dito meu feito, é isso mesmo. Só que em todas as paragens de autocarro sempre havia um passageiro à espera e não era conveniente fazer aquela operação com alguém a mirar.
Acabei por desistir. Dirigi-me a um parque de estacionamento de uma grande superfície. Já havia poucos clientes e o espaço onde estacionam as viaturas já tinha poucos carros. Parei junto a um qualquer, puxei a mala, caiu e ficou em pé junto à porta do condutor, do escolhido, tendo-me colocando em observação afastado, para ver o efeito.
Dali a pouco lá vem um cavalheiro com as chaves do carro na mão e a assobiar, vê a mala ali mesmo à mão, olha para todos os lados, não vê ninguém, abre a bagageira da sua viatura, e pega na mala. Qual quê! O homem tinha lá força para aquilo; faz segunda tentativa com as duas mãos, juntando-a ao peito e quando a metia na bagageira o fecho abriu e aí, amigos, foi coisa linda: o entulho entornou-se parte para dentro, parte para fora e o homem ficou sem pinga de sangue e os sapatos em mísero estado.
Ficou atrapalhado, tendo acabado por colocar a mala também lá dentro, arrancou com tanta força que até os pneus patinaram.
Adorava ouvir a história contada por ele. Quantas pragas também me pregou…
Na realidade, agora, passados vários anos, reconheço que merecia umas arrochadas pelas costas abaixo, não acham?