28.3.08

Pato com Estuque

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O António Santos Pato era um homem na casa dos 60 anos, casado, saudável, que nunca tinha ido a um médico e vivia na Vila de Palmela de onde era natural.
Palmelão com muito orgulho, falador, amigo dos amigos, não lhe era difícil granjear novos conhecidos, mais ainda pelo facto da sua profissão ser vendedor.
Adorava brincar, jeito que lhe ficara duma juventude feliz e livre de preocupações. Creio que não haveria colega de profissão que não tivesse recebido alguma marotice daquela “criança” com cabelos brancos e já avô.
Recordo que o Santos Pato, em certo dia de S. Martinho, quando com uns colegas comemorava aquela data, ofereceu para acompanhar o repasto um vinho da sua lavra. Um espanto. Um DOC, uma categoria, segundo as suas palavras. Afinal não era mais nem menos do que uma “surripa” já azeda que nem para vinagre servia. E que gozo lhe dava estas “sacanagens”, sendo a sua presença disputada, pois a sua disposição, aliado a uma anedota sempre apimentada fazia as delicias dos acompanhantes da mesa onde estivesse.
Para se deslocar no exercício da sua profissão, dispunha de um “Morris 1.000”, carrito inglês, com que ele embirrava, porque lhe dava a sensação de quando o conduzia arrastava o “assento” pelo asfalto.
Certa altura o Santos Pato perdeu a alegria, a satisfação de comer, sentia que não estava bem e portanto com o conselho da mulher resolveu ir ao seu médico de família, que por sinal nem conhecia.
Ouvia dizer que nos Centros de Saúde o atendimento era péssimo e que os médicos recebiam ordens para não prescreverem exames e medicamentos caros. Afinal veio encantado com o acolhimento que lhe foi prestado, tendo o clinico imposto ao Santos Pato a necessidade de efectuar uns exames complementares para confirmar ou não as suas suspeitas.
Com toda a sua paciência e desejoso de se pôr bom, deixou de beber bebidas alcoólicas, entrou em dieta e preparou-se para ir a Setúbal a uma clinica efectuar os referidos exames.
Previamente teve de fazer uma limpeza intestinal, “gramando” com o pipo do irrigador pelo ânus acima, coisa que já não foi lá muito do seu agrado, somente atenuado pelo facto da enfermeira ter sido a sua mulher.
Doente sofre, e o Santos Pato enquanto não estivesse bem, tinha-se tornado um sofredor pacífico.
No dia aprazado, o nosso amigo perdeu o “pio” e lá foi, angustiado, qual condenado a subir ao cadafalso, disposto a sujeitar-se a tudo, porque no fundo afinal o que ele pretendia era ver-se livre da sua doença.
Para o Santos Pato, que nunca se tinha vista naqueles assados, foi como se tivesse sido recebido com pompa e circunstância. Mandaram-no despir-se, ficou com as suas “intimidades” à mostra, nervoso, envergonhado, já que a bata que lhe deram era daquelas que tapa pela frente mas deixa o rabo de fora, ou vice-versa.
Novo clister, desta vez 2 a 2,5 litros de uma massa branca líquida que teria de encher os intestinos para um raio-x opaco, aplicado por mão sábia e experiente, mas sem o carinho a ternura e a paciência da sua cara metade, fruto de tantos e tantos anos de casado.
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Acabado o exame, indicaram-lhe onde era casa de banho para se aliviar de tamanho fardo e, ainda não estava bem sentado, fez uma descarga enorme e com tanta velocidade que se sentiu mais leve, feliz e até parecia que os seus males tinham desaparecido.
Vestiu-se e sem dizer adeus aos presentes, abre a porta e encaminhou-se para a saída, onde o esperava o Morris 1000 para fazer o regresso a casa.
Dado a sua saída precipitada, ninguém avisou o Santos Pato de que na primeira descarga o volume saído não deveria ultrapassar 2,5 a 3 dcl, do que tinha “engolido” pela via rectal.
Portanto, ainda antes de começar a descer as escadas principais da Clínica, dores abdominais anunciaram-lhe a chegada de novas convulsões.
O Santos Pato aperta-se, consegue dominar-se, arrastando os pés até junto do “Morris”, mete a chave, abre a porta e ao levantar a perna para entrar e antes de estar sentado, “aqui vai disto amigos que é de graça”. Em “esguicho e de palheta aberta”, aquele liquido espesso e branco corre-lhe pelas pernas abaixo.
A partir daquela altura o Santos Pato perde a vergonha e o pânico, arranca com o carro direito a casa, fazendo mais 4 ou 5 descargas pelo caminho. Quando se aliviava a quantidade acumulada com a pressão subia-lhe pelas costas acima até ao colarinho da camisa.
Quando chegou à porta da sua casa, a mulher esperava-o ansiosa por saber como tinham decorrido as coisas, mas ao ver o “Pato” a sair do carro com as “patas” todas salpicadas de branco fruto daquela massa que lhe escorria pelas pernas abaixo, pergunta-lhe se ele tinha andado nas obras a trabalhar com estuque.
Andei sim mulher, andei, andei nas obras e como vês estou todo obrado.
Só te digo que nunca mais lá me apanham para um trabalho destes.
Meses depois, o Santos Pato voltou a ser o mesmo homem alegre, feliz e pronto para “chapinhar” os amigos, só que estes já estavam a par da ocorrência que o nosso amigo tinha passado e quando entravam num bar para beberem um copo, havia sempre alguém que pedia assim: “Sai um taça de estuque aqui pró Pato”.

14.3.08

Almoço em Férias da Páscoa

(Este cabaz é igual ao que era usado na época, para levar o almoço aos empregados fabris. Fotografia tirada recentemente num mercado mensal)


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Em 1943, tinha eu doze anos e frequentava uma Escola Comercial em Lisboa. Os tempos eram difíceis, já que estávamos em plena Guerra Mundial e com a ameaça de invasão da Península Ibérica pelos alemães.
A maioria das indústrias trabalhava somente 3, 4 dias por semana, em virtude da falta de encomendas.
Se hoje a vida está mal, naquele tempo não estaria melhor e tenho dificuldades em fazer termos de comparação. Não havia televisão e a rádio funcionava algumas horas por dia.
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Meu pai, possuidor de adega e quinta, dedicava-se ao comércio de vinhos, acumulando com o meu irmão, 5 anos mais velho do que eu, a profissão de corticeiro, onde era encarregado.
Naquele tempo, as donas de casa, eternas castigadas, viam-se e desejavam-se a executar as mais variadas receitas de cozinha, que nunca foram publicadas em qualquer livro de culinária. A imaginação teria que ser fértil, pois sem dinheiro e sem produtos para comprar, pois praticamente todos eles eram fruto de racionamento, podendo só ser adquiridos através de senhas fornecidas pela Junta de Freguesia local.
Da nossa casa ao local da fábrica distava 3 Km que os meus faziam de bicicleta, mas havia trabalhadores que calcorreavam 20x2 Km a pé, todos os dias para entrarem ás 8 horas e saírem ás 17 de Segunda-feira a Sábado. E isto com todo o respeito que tenho pelos transmontanos, não era em Trás-os-Montes, era aqui a vermos Lisboa do outro lado do Tejo.
Mas na miséria e nas dificuldades também se acham motivos de alguma felicidade e o Zé, pelo menos 2 vezes por ano, vestia o seu melhor fatinho e com os seus progenitores e irmão ia a Lisboa ver teatro de revista, comia no João do Grão na rua dos Correeiros (ainda hoje lá vou e que bem que se come) e a extravagância era assunto de conversa para 3-4 meses, entre os amigos.
Junto à fábrica existiam umas cocheiras propriedade daquela, já que o transporte da cortiça se fazia em carros puxados por mulas. O movimento nas cocheiras era compatível com o movimento na fábrica e à entrada daquelas havia sempre os resíduos dos “escapes” das muares, que digo em abono da verdade não era tão pouco como isso.
Os trabalhadores corticeiros dispunham de 1 hora para almoço e portanto só os que residiam a menos de 1,5Km tinham possibilidades de ir comer a casa. Nesta conformidade, uns levavam o petisco e outros, mais afortunados, contratavam uns miúdos que a troco de $50 (ao valor actual 0,0025 €) por semana, o levavam à fabrica, neste caso feito em casa durante a manhã e portanto ainda quente. Não fazem ideia de quantos miúdos das povoações próximas transportavam os almoços de trabalhadores daquela fábrica, enfiando os cabazes de verga num pau, sobre o ombro, como se vê em imagens da China.
No período de férias, era a mim que me calhava levar o almoço ao pai e irmão, num cabaz de verga onde como segurança se metia um pauzinho para não abrir.
Há uma altura na vida em que julgamos saber de tudo e pobres de nós que afinal andamos sempre a aprender. Recordo que fiz ver à minha mãe que, pelo facto de já ter 12 anos, não era criança e portanto não era necessário colocar o tal pauzinho de segurança, porquanto eu não o deixaria abrir ou cair. Ela, experiente, sem fazer caso da minha conversa, além do pauzinho ainda teve o cuidado de, como reforço, atar um cordel às asas. Claro que ao aperceber-me disto, assim que dei corda às alpargatas e na primeira curva do caminho, portanto já longe das suas vistas, desatei o cordel, retirei o pau e com a altivez de teimoso segui o meu caminho, orgulhoso do meu feito, para na volta confessar à mãe Júlia que eu tinha razão (tinha tirado o pau e o cordel e que nada aconteceu ao cabaz e consequentemente aos almoços).
O percurso tinha sido feito perfeitamente normal, tudo estava a correr conforme os meus desejos até que quando passei pelas cocheiras já atrás referidas, o filho da mãe que usa uma forquilha, veste de vermelho e tem cornos, fez com que tendo a mão já dormente, uma das asas do cabaz saltou e entornou ali em plena estrada, e por cima dos excrementos das muares, o recipiente com ovos mexidos e rodelas de chouriço, mais a panela da sopa de feijão. O meu orgulho cai por terra, o homem que julgava já ser volta à realidade e não sabe o que fazer. E o toque do búzio do meio-dia aproximava-se vertiginosamente. Então, num rasgo de audácia, com as duas mão faço uma conchinha e começo a apanhar e a colocar no prato, os ovos e as rodelas do chouriço, misturados com as palhinhas que já tinham passado pelo estômago e intestinos dos “alimais”.
Quando acabei, olhei para aquilo e cheguei à conclusão que nenhum cozinheiro de qualquer restaurante de luxo de Bruxelas, New York ou Paris, faria melhor do que eu. Coloquei a panela dentro do cabaz, o prato por cima, para se manter à temperatura ideal, limpei os jornais velhos que a envolviam, dei um toque de aprumo, pus o pauzinho, atei o cordel e lá segui o resto do caminho, a pensar como é que aquilo ia acabar.
Entrei no refeitório, arriei o material e contra o hábito, passei-me cá para fora frente à fábrica onde diariamente se juntava um batalhão de vendedores de frutas, que as transportavam em carroças (eram os automóveis da época).
Andava por ali, feito pardalito tonto à espera que o meu pai e meu irmão voltassem para o trabalho, para ir buscar o cabaz e trazê-lo de volta.
Pouco depois, vejo meu irmão sair, aproximo-me e ele diz assim: Vai lá, vai, que o pai obriga-te a comer o almoço que lá deixaste. Nem sei como me aguentei nas pernas, deu-me vontade de fugir mas perdi as forças, o meu coração batia desordenadamente e segui atrás dele. Ele, coitado, sem notas nem trocos nos bolsos, dirigiu-se a um homem que habitualmente vendia frutas por ali, pergunta-lhe se lhe fiava 2 maçãs e 2 laranjas até ao dia seguinte.
Como resposta, o homem chicoteia o animal e dizendo arre macho, seguiu.
Ficou gorada naquela ocasião a oportunidade de meterem qualquer coisa no bucho.
O remorso de os saber sem almoço doeu mais que os tabefes oportunos que me estavam reservados à chegada a casa e que ainda hoje não sei porque me foram perdoados.

5.3.08

A galinhola


Quando o pobre é pobre, podem passar os anos, podem os primeiros-ministros dizer que a pobreza está em vias de extinção, mas o certo, certo é que o pobre mantém-se pobre até morrer.
Este José Joaquim trabalhava, tinha ordenado, mas a família era composta por 4 e por mais que esticasse nunca chegava. Mas era um homem sempre bem disposto e cheio de humor. Valia-se como à grande maioria dos empregados fabris, da Cooperativa, porque comprava a “cão” e depois ia pagando como podia.
Esteve doente e internado no Sanatório do Barro, perto de Torres Vedras, e aí aprendeu a embalsamar aves e outros pequenos animais.
Portanto, para ganhar mais alguma coisa entretinha-se a fazer aquele biscate. Num Sábado ao fim do dia, a sua mulher estava preocupada com o jantar que tinha de apresentar para os 2 filhos de pouca idade. Lamentando-se da sua sorte, alvitra ao José Joaquim que ela ia à Cooperativa comprar uns ovos e uma lata de salsichas, enquanto que ele fritava umas batatas que, com mais uma sopa, sobra do almoço, resolvia o problema daquela noite.
No momento em que a Judite (assim se chamava a companheira/esposa) vestia um casaco para ir à rua, tocam a campainha e, como era ela que estava mais perto da porta, foi abri-la e à sua frente está um desconhecido que lhe pergunta se era ali a casa do Sr. José Joaquim, apreciando que ele trazia uma enorme ave já morta.
O José Joaquim, ao ouvir o seu nome foi-se aproximando e vê na mão do desconhecido uma Galinhola. Tendo percebido imediatamente o que o senhor pretendia, diz assim para a sua mulher:
Judite, vai descascando as batatitas e frita-as, que eu atendo o senhor.
Apresenta-se ao desconhecido e o outro, passando-lhe a Galinhola para a mão, pede-lhe encarecidamente que a embalsame, mas com todo o carinho e cuidado porque além de ser uma ave extremamente bonita tinha-lhe feito perder um dia inteiro no sapal, ali prós lados do Talaminho, bem perto de onde se faz a festa do Avante, até conseguir dar-lhe um tiro certeiro que a prostrou.
O José Joaquim sopra-lhe as penas, vai-lhe arrancando algumas e diz ao homem: vamos ver o que consigo fazer. É que o tiro foi dado de muito perto, a carne está muito dilacerada deve ter ossos partidos e portanto vai ser muito difícil fazer qualquer coisa. No entanto, o animal fica. O preço digo-lhe depois, passe por cá daqui por oito dias, porque me faltam alguns produtos que só na próxima segunda-feira posso adquirir.
Naquela noite a família deliciou-se com uma Galinhola tenra que fazia inveja a tudo que ultimamente tinham comido. Foi efectivamente soberba e nem pelo Natal alguma vez o José Joaquim tinha tido refeição tão requintada.
Oito dias depois, lá aparece o caçador para levantar o seu troféu devidamente embalsamado e inicia a conversa, informando o José Joaquim que em sua casa já tinha um lugar de relevo para a colocação do seu orgulho de caçador. Agora, o senhor sabe lá, quando na terça feira fui pegar no bicho, porque não o pude fazer antes, que tal como lhe disse tinha falta de produtos para executar o trabalho, aquele exalava um fedor que tive que abrir todas as janelas da casa para renovação do ar.
O homem ficou paralisado, triste e pálido, nem queria acreditar no que ouvia, pelo que foi o José Joaquim que teve de o animar e consolá-lo, alvitrando que voltasse ao sapal para matar outra, porque ele estaria disposto a fazer-lhe o trabalho com um desconto, dado a pouca sorte que teve nesta. O José Joaquim recebeu um pedido de desculpas pelo incómodo, mas que voltaria na hipótese de ter sorte na nova caçada.
Percorreu todos os caminhos estreitos do Sapal, só que a caça nunca mais lhe correu bem e pelo estreito do José Joaquim e da sua família também nunca mais correu Galinhola. Até que, chegando a época das perdizes, o caçador voltou entregando 2 peças lindíssimas para embalsamar, cujo trabalho foi executado com esmero e requinte, cada uma na sua peanha de madeira envernizada a primor e cujo preço o José Joaquim fez questão de não cobrar.
Como paga, o homem sentiu obrigação de dizer que lhe ia trazer uma galinha de oferta, tendo o nosso J.J. respondido que deixe lá obrigado, mas a Galinhola estava um espanto!
Bem me queria parecer...
E ficou cliente para sempre.