29.6.09

PECADOS MEUS


Os meus contos não obedecem a datas nem a qualquer outra ordem. Saem repentinamente e quando escrevo um, estou imediatamente a lembrar-me de outro.
Isto a propósito de o anterior ter alguma ligação à religião e este seguir a mesma linha.
A “faena” acontecia na altura em que o Zé teria 14/15/16 anos, época própria para os jovens apanharem uns “borrachos” bem dados e merecidos, pela prática de devaneios e despropósitos.
Com aquela idade, são eles que sabem tudo, são eles que não recebem conselhos de ninguém e são eles que se apanhassem uns sopapos na altura certa não lhes faziam mal algum, antes pelo contrário.
Isto nos anos quarenta, porque se fosse agora, os pais, primos e avós metiam-se numa carga de trabalhos, pois os meninos recorriam ao psicólogo, às entidades policiais, ao Ministério Público e o assunto chegava à Assembleia da República, com a condenação dos agressores, dado que os direitos de vândalo tinham sido violados.
Mas vamos ao conto.
Durante o reinado de D. José, era seu ministro Sebastião de Carvalho e Melo, só mais tarde Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, que deixou marcas para todo o sempre neste Portugal desgraçado. Ele protegeu e criou a primeira região demarcada de produção vinícola do mundo, em defesa do Vinho do Porto; ele mandou reedificar Lisboa após o terramoto de 1755; mandou edificar Vila Real de Santo António para afrontar os espanhóis; ele limpou de uma assentada a família Távora de uma forma sanguinária e presumivelmente nunca vista. Ele tem em Lisboa a estátua mais imponente de toda a República.
Aquando do terramoto atrás referido, as águas subiram e toda a zona ribeirinha do estuário do Tejo subiu, subiu, levando atrás de si morte e desgraça, dando continuidade à destruição iniciada com o tremor de terra. Nas aldeias da região todos os sinos tocaram a rebate e, no final, enterraram os mortos e cuidaram dos feridos.
E a partir daí, no dia 1 de Novembro de cada ano, muitas dessas povoações fazem sair as procissões das suas igrejas, para comemorar a interferência divina naqueles acontecimentos.
Como já vos contei no conto anterior, na povoação do Zé não existia igreja e, sendo também zona ribeirinha, não sei onde os meus conterrâneos fizeram as suas preces, nem por quem chamaram, na hora do aperto.
Cada povoação relembra o dia à sua maneira e na igreja mais próxima do meu sítio, edificada bem lá no alto para marcar a sua imponência, começam na véspera os actos litúrgicos, terminando ao fim do dia com uma ladainha.
A Igreja fica cheia como um ovo, mal nos podemos mexer, o povo está de pé a ouvir com toda atenção; o padre, normalmente convidado e vindo doutras paragens. A sua eloquência é apreciada e compara-se com os dos anos anteriores.
Mas a época, além das festividades religiosas, também é tempo de castanhas, de frio e chuva, que leva a que os paroquianos não larguem o chapéu-de-chuva e o abafo. Podem imaginar, pois, os chapéus molhados, os sobretudos e gabardinas encharcados, a multidão comprimida, o cheiro que aquilo tudo tem. Não há incenso que nos valha.
Pois além disto tudo, o Zé enchia as algibeiras de castanhas assadas ou cozidas (gosto das duas) e enquanto ouvia o sacerdote comia castanha atrás de castanha e metia as cascas no chapéu de chuva de quem estivesse mais perto de si, já que o seu proprietário estava com a máxima atenção e cabeça no ar ao que o padre dizia.
Quando tudo terminava, o Zé marchava imediatamente para fora do templo, para ter o gozo supremo de ver o dono do chapéu abrir o dito e apanhar com as cascas das castanhas pela cabeça abaixo. Passei palavra e, nos anos seguintes, os companheiros de aventuras espalhavam-se por vários locais estratégicos da igreja, para repetirmos a façanha, ao ponto de ao terceiro ano o padre, do seu púlpito, comentar a graça da desgraça praticada na casa de Deus.
Nunca fui, nunca fomos apanhados, mas sinceramente confessem, com toda a graça que isto possa ter agora (o crime já prescreveu), não eram uns açoites bem pregados, dado que nunca houve um chapéu-de-chuva pelas costas abaixo?
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15.6.09

SE DEUS QUISER



Como é que alguém que não faz nada tem lata para dizer que está de “vacances”?



O Zé é católico como a maioria dos portugueses, o Zé respeita a religião cristã como a maioria dos portugueses, mas o Zé também não frequenta a igreja como a maioria dos portugueses.
No lugar onde nasci não havia igreja e ainda hoje ela não existe, embora o sítio já faça parte integrante de uma cidade. Claro que sim. Sou baptizado e tenho orgulho nisso, mas não tivesse sido uma conterrânea a pegar pela mão uma vintena de rapaziada e levar-nos à molhada à igreja, pedir ao padre para nos baptizar, decerto estaríamos todos no rol dos renegados de Deus.
Fiz esta introdução para compreenderem as razões porque, respeitando-a, vivi sempre com indiferença perante e com a igreja. Uso, também como grande número de portugueses, um fio de ouro ao pescoço, onde está pendurado uma cruz com um Cristo crucificado e, nas horas dos apertos, me venham à lembrança todos os Santos dos Céus.
Já não recordo há quantos anos isto se passou. Garanto-vos todavia que foi há muitos, muitos mesmo, aí para 50.
Tinha um “Ford: Anglia-Fascinante”, viatura conhecida pelo “Ora Bolas”, e um dia chegou a hora de o mandar às urtigas e trocar por outro também da Ford, mas mais potente, airoso e mais a meu gosto.
Em Setúbal, no “Stand” da marca fiz o negócio, mandei ajeitá-lo à minha maneira, peguei nele e coloquei-o na garagem.
Nessa noite, enquanto jantava com meu irmão e a mãe Júlia, disparei a noticia, desta maneira:
Mãezinha, comprei um carro novo e no próximo Domingo, como de costume, vamos a Fátima. Tendo ela retorquido: “SE DEUS QUISER”.
Não, mãe Julia, o carrinho está na garagem e quer Deus queira, quer não queira, no próximo Domingo a ida a Fátima é uma certeza.
O meu irmão, único e mais velho, aproveitando a embalagem anuncia que também iria, levando a sua mulher e filhos, e que levaria comida para todos. Portanto, perspectiva de um pic-nic em cheio.
No Domingo aprazado, a família “Quincoces” estava pronta para ganhar a batalha do asfalto, visitar Fátima, pagar alguma promessa e inaugurar o conta-km, daquele que eu tinha destinado para ser meu companheiro de aventuras durante alguns anos.
Cheguei pelas 9 horas e os poucos mais do que 100 km do destino final não se faziam como agora, numa correria desenfreada pela auto-estrada.
Meu irmão no seu “carocha” esperava-me ansioso, a mãe Júlia coloca uma manta sobre os joelhos, o meu pai senta-se ao meu lado (que era isso de cintos de segurança nessa altura?), meto a chave na ranhura, dou à ignição, ponho o motor a trabalhar, meto a primeira velocidade, e… (que se passa meu Deus…) o bólide dá um ultimo suspiro, foi-se abaixo e finou-se naquele momento. Trabalhar não era com ele e andar… zero, tal e qual um burro teimoso. Entro em desespero, salto com raios e coriscos, faço mil tentativas e o resultado foi sempre o mesmo. O filho da mãe do Ford, não respondeu perante tantas insistências. Ali paradinho, no mesmo local onde eu julgava que se ia iniciar a viagem do seu baptismo.
A mãe Júlia, impávida e serena, com a sua cara cândida, olha-me nos olhos e diz assim: “Se Deus quiser, meu filho, se Deus quiser".
No outro dia pela manhã, um pronto-socorro encarregou-se de o levar de volta para Setúbal e no Domingo seguinte lá se realizou a viagem a Fátima, sem o brilhantismo desejado, pois os nossos corações batiam de forma diferente…
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1.6.09

O Vendedor de Peixe



O Peixeiro era um homem de trabalho, sempre correndo atrás do seu burro, numa azáfama constante.
Dedicava-se à venda porta a porta de peixe que ia buscar a Sesimbra, na luta pela vida que poucas vezes lhe sorria.
Calcorreava diariamente os largos km que separavam a sua terra natal daquele vila piscatória, que nesta altura está transformada numa das mais afamadas estâncias turísticas da nossa terra.
Chegava sempre cedo na ânsia de assistir aos primeiros pregões da lota, que na altura era efectuada em plena areia da praia, ali ao lado da Fortaleza. De quando em quando, lá se ouvia a sua voz para arrematar uma parcela, sempre prejudicada por alguém que se lhe adiantava. Negociava portanto com quem se adiantou, ocasionando por isso mais um pagamento de intermediário que, não sendo pescador, estava sempre à coca de ganhar a vida à custa de outros.
Não sei se os meus visitantes alguma vez apreciaram aquela lota, aquele movimento.
Pela noite, os barcos a chegarem da pesca, vindos directamente ao areal. A descarga do peixe que, na hora, era imediatamente separado e colocado um a um sobre montinhos de areia para apreciação. O peixe-espada de Sesimbra, com a sua cor prateada, os pargos, os robalos, os chocos em celhas de madeira, o imperador, as lulas, espectáculo inolvidável.
A cantilena do pregoeiro leiloando os quinhões e os burros que esperavam pacientemente pelos seus donos, para depois alongarem com as caixas do pescado no seu regresso às origens para fazerem a venda às primeiras horas do dia.
Digo-vos que sou um dos felizardos ainda vivo que assisti a tudo quanto acabo de narrar. Jamais se poderá ver outra vez tamanho beleza.
Então o peixeiro corria, espicaçava o jerico na tentativa de chegar primeiro do que outros concorrentes da mesma região e que também se dedicavam àquele comercio.
O Miguel, assim chamava ao quadrúpede, estava velho, o cabelo já estava a ficar russo e demonstrava algum cansaço.
Um dia, num Domingo, o burro do peixeiro livre das caixas do seu fadário, pastava no sem quintal tranquilo quando o dono, usando palavras mais ásperas resolveu ir ao mercado de Coina vender o animal. Não sei se este teria percebido a trama que lhe era preparada, mas como não tinha remédio nem vontade própria lá foi, para onde Deus quisesse.
Nos mercados, a ciganagem são os reis e senhores do negócio da burricada e portanto sempre aparece alguém para fazer um negócio, oferecendo pouco, dado aquela carcaça velha já não ter mais para dar ao seu dono. Iria acabar, decerto, no Jardim Zoológico servindo de petisco aos leões.
O peixeiro, ao ouvir estes comentários desfez-se por tuta-e-meia de quem o tinha ajudado uma vida inteira.
Almoçou numa das barracas desmontáveis da feira e resolveu ir procurar outra animal para substituição do Miguel.
Aproximou-se de outro grupo de ciganos e, fazendo escolha, encontrou um do seu agrado. Estava tosquiado, tinha desenhos no lombo, lavado, parecia jeitoso. Perguntou o preço e arrepiou-se; a venda de um não dava para pagar o outro. Teve por isso de desembolsar forte maquia.
Negócio fechado, lá marchou de regresso a casa com o seu novo companheiro da árdua luta.
Tratou de lhe pôr nome e, para esquecer mais depressa o Miguel, chamou-lhe Jeremias.
Perto de casa, parou para falar com um amigo e contar-lhe o seu negócio. Largou a reata e o Jeremias partiu sozinho a caminho do palheiro.
O homem do peixe ficou surpreso, observou o Jeremias melhor e chegou à conclusão que comprou pela tarde o Miguel que tinha vendido pela manhã.
Os ciganos tinham-no tosquiado, fazendo uns desejos no corpo, uma trança no rabo, lavado, parecia mais novo. Não sei como a coisa acabou, pelo menos que eu saiba não foi à conservatória alterar o nome do bicho…
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