30.9.09

O número 9

O número 9 foi o primeiro a fugir à frente do “Novilho”.
Cá está ele com o carimbo no ar. É o primeiro da esquerda.

De seu nome Apolinário, nasceu por volta de 1939/40, numa pequena povoação do sul do Tejo, freguesia de Amora, acrescentando mais uma boca a comer naquela casa de gente pobre, onde já corriam de pé descalço mais 8 irmãos. O progenitor, trabalhador rural, gostava de encostar a barriga no balcão da taberna, dando-lhe jeito aquela posição, porque depois de emborcar uns “baldes de 3” sentia as pernas a fraquejar e assim o apoio dava-lhe a estabilidade que de outra maneira não conseguiria. Era raro o dia que não regressava a casa acompanhado de uma “carraspana”.
O seu menino nasceu com defeito no pé esquerdo e nem a ortopedia conseguiu rectificar a anomalia, ficando, pois, aleijado para toda a vida.
O seu pai, conforme os filhos iam nascendo, atribuía um número a cada um deles. Ao nosso Apolinário, pela ordem do nascimento calhou o número 9 (vejam só que, futebolisticamente falando, a equipa daquela casa seria uma equipa destinada ao insucesso, pois iria ter um avançado centro coxo). As crianças iam crescendo e, quando havia festa na terra, qual bando de pardais, saltitavam pelos carrosséis, pistas de carrinhos de choque, tudo quanto era barracas de feira, enfim dando azo às aventuras das suas traquinices. Naturalmente, um perdia-se, outro achava-se, até que, por muito que se procurassem um deles, não aparecia mesmo. Aí entravam o pânico e apressadamente regressavam a casa ou ao tasco onde o pai estivesse, a dar-lhe conhecimento que o n.º “tal” se tinha perdido na festa. Entre o beber e o arriar do copo, o pai lá ia dizendo que o número tal e o tal fossem procurar o número que faltava, e que os outros regressassem a casa, pois quando ele regressasse fariam as contas. E, no fundo, raras eram as vezes que dava uns açoites no que se portasse mal.
Com 12 anos, o nosso herói começou a aprender a profissão de sapateiro e, mais 2 ou 3 depois, já era exímio na arte de colocar umas tombas, que uns joanetes mais desenvolvidos deformavam os “chanatos”. Usava um sapato especial, dado só conseguir arriar no solo o peito do pé, ficando o calcanhar no ar, assim como os sapatos de salto alto, que as senhoras tanto gostam e que tanto mal lhes fazem. Por isso o seu andar acabava por ser muito cadenciado e dando um toque sempre que batia no chão. A seguir ao ofício de sapateiro, teve vários trabalhos, até que ainda novo acabou por se reformar.
Na localidade há uma colectividade que, entre outras, tem a secção de atletismo e consequentemente corredores de fundo. Na altura que iniciou a aprendizagem de sapateiro, o Apolinário, aproveitando a distracção de uma galinha e do seu dono, corredor de fundo no clube, pegou no galináceo, meteu-a debaixo do braço e ala pernas que vos quero. O animal faz barulho, o dono dá por isso e desata a correr para apanhar o “larápio” furtivo. Impossível. O coxo demonstrou ter competência para fazer parte da equipa de atletas lá da terra e não foi apanhado.
Nunca gostou que lhe chamassem coxo e afinava seriamente se percebia que alguém o fazia maldosamente, tendo no entanto por vezes atitudes de humor relacionadas com a sua infelicidade.
Certa vez, um amigo convidou-o para no seu automóvel irem dar um passeio a Évora e foram almoçar num dos restaurantes da cidade, que tem um balcão de serviço de ”barra” e pavimento de soalho de madeira. O silêncio foi interrompido pelo toque, toque do pé do Apolinário, a dirigirem-se para uma das mesas vagas e, por detrás deles, em voz bastante acentuada e sotaque alentejano, alguém diz assim: É com…padre, empres...te aííí o cárim...bo.
Olham para trás e toda a gente comia em silêncio, como se nada se passasse. A cara do Apolinário tornou-se em arco-íris, sentou-se e desabou a sua ira com o companheiro de viagem. Não conseguia empurrar o entrecosto com as batatas pela goela abaixo e lamentava não saber quem tinha sido o alarve que se tinha metido com ele, que lhe daria com a bandeja pela cabeça abaixo. Acabado o almoço, e quando já se encontravam à porta de saída, do balcão, onde vários clientes bebiam cerveja alguém atira com esta: Com...pádre... ‘stá áqui á tinta... pró...cárim...bo. Desatam todos a rir e o nosso amigo fez promessa de nunca mais ir a Évora. O Zé chegava a estar entre 6/7ou 8 anos sem o ver. E somente eu era capaz de, sempre que nos encontrávamos, ter a coragem de lhe perguntar se já tinha almofada nova para o cárim...bo.
Entre um abraço forte, ia-me dizendo ao ouvido que só de mim admitia tamanho insulto, acabando por rirmos à gargalhada.
Adorava touradas, o nosso n.º 9, e lamentava-se de ser coxo, impedindo-o por isso de tentar ser toureiro. Sempre que havia uma novilhada lá estava na primeira fila para se deliciar e fazer uma faena. Certa vez, convidei-o para ir comigo a uma tenta que se realizava numa quinta agrícola em Salvaterra de Magos. Pelo caminho não falou de outra coisa que não fosse de touradas, toureiros e seus trajes. Perdeu o pio e pediu-me para não dizer a ninguém, quando se abriu a porta do curro e em vez de entrar na praça um novilho, entrou um “jerico” bebé aos pinotes, fazendo os 3 candidatos ocasionais a darem de “frósques”.
Evidentemente ficaram aprovados em simulação de fugida.
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11.9.09

Vinho


Moscatel, feito pelo pai do Zé em 1944. É a única que existe

Já várias vezes referi no meu blogue que o meu pai era vinhateiro. Tinha quintas, pessoal, tinha o João Pião que deu motivo ao meu conto sobre o jerico.
Recordo com saudade a grandiosidade das adegas, dos lagares, dos tonéis, das pipas, dos barris, dos funis de madeira, das prensas de pedra para espremer os engaços, os chapéus dos trabalhadores sujos com o mosto, de uns anos para os outros, por transportarem à cabeça as uvas das camionetas para os lagares e a pisa cadenciada, sem cantares nem concertina (isso eram coisas do Norte), mas em alternativa havia sempre uma anedota mais picante que às vezes roçava o ordinário.

O pai António era um homem organizado e, quando chegavam os últimos dias de Julho, pegava na sua pasteleira e ia até Cabanas, povoação do concelho de Palmela, onde um amigo de longa data era o seu representante na região, para lhe dar dicas das propriedades onde as cepas estavam mais compostas e com perspectivas de bons cachos para fazerem vinho.
É que, para a quantidade que necessitava para fazer o precioso líquido, as uvas das suas propriedades não chegavam, tendo por isso de negociar com outros agricultores.
O Zé vivia habituado a tudo aquilo e ano após ano o ritual repetia-se. Como eu recordo as uvas comprada na Barra Cheia, concelho do Barreiro, a uma senhora solteira já a entrar na casa dos 60 anos, mulher do campo, que só uma vez sonhou em namorar, e até esse pretendente não passava do Stº. Hilário, imaginário que a aguardaria num dos corredores do céu, no sentido de lhe pedir contas pelo facto de não ter arranjado marido para a ajudar nas lidas do campo.
O negócio foi de vulto e a senhora, convidada do meu pai, teve honras de embaixadora em representação da Barra Cheia para comer e ficar em nossa casa com a sobrinhita a um fim de semana, depois de receber o valor das arrobas de uvas, pesadas na balança de pilão, que a sua quinta tinha produzido.
Já depois de deitadas, não recordo porquê, a mãe Júlia teve necessidade de entrar no quatro. Bate, entra e depara com a D. Cesaltina com as suas próprias cuecas (tipo clótes) enfiada na cabeça, onde no sítio da “parrachita” aparecia uma mancha amarelada, fruto de uma mijadinha menos controlada. O Zé, que tinha sido admoestado para não entrar, mas não fugiu à tentação de dar uma olhadela, e como seria de esperar desatei a rir à gargalhada, pois as pernas da peça em causa não deixavam ver as orelhas.
Prometi a mim mesmo não contar a ninguém o que tinha visto, coisa digna de um filme-comédia italiano dos anos 60. Podem calcular que cumpri escrupulosamente e no outro dia não contei a alguém que se chamasse ninguém, mas em contrapartida não houve gato nem cão que não ouvisse da minha boca a historia das cuecas enfiadas na cabeça.
Quantas vezes fui ao Efem Rodrigues, à Rua da Prata em Lisboa, buscar as análise que com toda a regularidade o meu pai mandava fazer ao vinho e comprar produtos de correcção, de forma a manter inalterável a qualidade do precioso néctar.
E até a mãe Júlia, aproveitada bem a ocasião para fazer um doce de uva, coisa que jamais comi de paladar tão requintado. Nada igual ao que já provei recentemente e adquirido em supermercado.
Em Monsaraz, quando numa extensão da visita que fiz a Alqueva, para apreciar a barragem que originou o maior lago artificial da Europa e que num futuro muito próximo se tornará no maior lago conspurcado do Mundo, tais são as imundícies que por ele flutuam, adquiri um frasco de doce de uva branca, que comprei imediatamente para fazer comparação com o que as minhas glândulas gustativas acusam e fiquei mais uma vez decepcionado.
Em traços gerais, estas são recordações que tenho das azáfamas do Vinho e dos meus tempos de menino.
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1.9.09

Fim-de-semana na Serra da Estrela


Foto tirada da net

O nosso país era comandado pelo general Ramalho Eanes (patente que lhe foi atribuída propositadamente para ocupar o cargo), natural de Alcains, terra que como todos sabem fica no sopé da Serra da Estrela. Num fim-de-semana, acompanhado do nosso cachorrinho ainda bebé, resolvemos ir ao local mais alto de Portugal. O “brinquedo”, que por sinal os meus visitantes já conheceram na fase adulta, através do meu conto de 22 /09/08 denominado “O meu cão fiore”, mordia tudo quanto lhe aparecia pela frente. Na noite de Sábado para Domingo, em Alcains procurámos alojamento na estalagem e ficámos a saber que naquela unidade hoteleira era interdita a permanência de cães. O céu caiu-nos em cima, era tarde e optei por falar ao coração do empregado, dizendo que o cachorrito era muito dócil, não ladrava, era muito educado e até sabia fazer as contas conjuntas do abono de família com os subsídios escolares (ainda não havia a Universidade Independente, nem o computador Magalhães), um autêntico prodígio e portanto não iria incomodar ninguém. Consegui demover o moço e ultrapassar a rigidez dos regulamentos. Foi ele quem nos arranjou um cabaz transformado em alcofa/cama, de modo a que os outros hóspedes não dessem pela marosca. Ao dirigir-nos para o quarto, passando pela sala de jantar, a “criança” deu pelo cheiro de comida e aprontou-se imediatamente para saltar cá para fora. Foi o Diabo! Lá o tapámos, lutando contra a sua insistência, metemo-lo na casa de banho, lavámos as mãos, fechámos as luzes e fomos jantar. Pelo corredor ouvimos o seu “choro”, jantámos carne e metemos uns bocados embrulhados num guardanapo para a sua refeição.
O seu rabinho abanou de felicidade ao ver-nos e lambeu-se ao comer com sofreguidão… Colocámos um jornal no chão para a hipótese mais do que provável de querer fazer as suas necessidades fisiológicas.
Dormimos tranquilos. O “bicho” portou-se bem. Mas pela manhã, quando entrei na casa de banho meti as mãos à cabeça. A tampa da sanita, que era de madeira, tinha-se atirado a ela com unhas e dentes, do piassaba pouco restava e uma das paredes que era forrada a papel encontrava-se em mísero estado. O pequeno-almoço foi tomado em desassossego. O “Fiore” tinha mostrado a sua raça. Na recepção denunciei os seus crimes, mas o empregado, com um sorriso nos lábios mandou-nos embora, sem ter ido observar os estragos. Acho que fez mal…
Partimos para Seia e subimos ao Sabugueiro. Na casa de uma pastora comprei um queijo, que ainda estava na cura colocado numa tábua por cima da chaminé. Quis comprar pão e vinho para, em plena serra, fazer o papel de Marcelino. Pão não havia, mas a senhora que nos vendeu o queijo foi simpática. Pegou numa garrafa vazia e mandou o filho comprar o precioso líquido. Oferecendo-nos... Em todo o lado há gente simpática, gente boa, gente simples, humilde que sente prazer em fazer bem.
Em plena serra, já tarde, mas a servir de almoço, lançámo-nos ao queijo, mesmo sem pão, e dei uma golada pela garrafa.
Os “tintins” caíram-me ao chão. A garrafa tinha servido a aniz e dentro dela ainda tinha a árvore com o açúcar… Era impossível beber aquela mistela e continuar a mastigar só queijo e até o “Fiore” desistiu!
Barrigada de fome para mais tarde recordar. Tivesse tudo corrido normalmente e não estaria eu agora a contar estas aventuras.
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