19.10.09

Traição

Esta é a cafeteira que guardo religiosamente
e que meu pai me ofereceu após o falecimento da mãe Júlia

A Segunda Guerra Mundial ainda não tinha terminado. O Zé tinha 12 anos, aqueles anos irrequietos a que nenhum menino daquela idade pode fugir. Ainda usava calção e todas as manhãs entrava porta dentro da Escola Comercial, situada no largo do Carmo, ao lado do Convento do mesmo nome, onde em 1974, Marcelo Caetano se refugiou por causa da revolução de Abril.
O meu papá continuava na labuta das quintas, das adegas, do vinho tinto e branco, coisas que para ele não tinha segredos.
Nas adegas com os seus lagares enormes, onde dezenas de homens, arregaçados até às virilhas, pisavam a uvas depois da colheita e de terem permanecido na eira, para adquirirem mais doçura.
Assisti à apresentação de um novo trabalhador, por alguém seu conhecido. O homem falava espanhol e, enquanto dizia a meu pai que necessitava de trabalho para poder sobreviver, acarinhava a minha cabeça, fazendo-me festas.
Cativou-me e foi este “pardalito” que intercedeu por ele e lhe abri as portas do coração do meu progenitor para lhe dar trabalho, iniciando na própria hora.
Demonstrou sempre vontade de cumprir, era zeloso e diligente e tinha vontade férrea de aprender o português. Pernoitava numa povoação ali perto, em casa de quem o apresentou.
Pela noite, na hora de jantar comentava-se a chegada daquele desconhecido a falar espanhol, que conquistou a simpatia de todos, mas cuja profissão, notava-se, nunca teria sido aquela.
Um dia, comprou uma cafeteira de alumínio e com cinzel gravou nela o nome da mãe Júlia e do pai António, desenhando com primor um ramo de oliveira e colocou-lhe data.
Tinha para comigo um carinho tão especial, que sempre que eu tinha oportunidade fugia para junto dele e interrogava-o. De onde era, se era casado, se tinha filhos. Fitava-me, fitava-me e respondia-me sempre com os olhos húmidos de quem queria chorar.
Que tinha um filho da mesma idade que eu, que era viúvo, pois a sua mulher tinha morrido num massacre. Que era um massacre? Fiz a pergunta, tendo-me esclarecido que era uma coisa muito má, que não especificava para não me preocupar.
Como estas coisas não se esquecem mais, sei que trabalhou na nossa casa 7 meses e um dia, deixou de aparecer ao trabalho e não voltou para receber o salário. Soubemos que teve uma discussão com quem lhe tinha dado guarida e arranjado trabalho. Não soubemos nunca a causa da desavença, soubemos um pouco mais tarde o suficiente para perceber a traição que aquele homem sofreu, de quem supostamente o protegia.
Já não recordo porquê, o Zé descia a rua do “Limoeiro”, sobranceira ao Bairro de Alfama em Lisboa, onde está a cadeia do mesmo nome e um pouco mais abaixo a cadeia do “Aljube”, onde eram encarcerados os presos políticos. Ouvi chamar com insistência pelo meu nome, olhei e não via ninguém, mas quem me chamava disse-me para olhar para cima. Atrás das grades da cadeia do “Aljube”, o Miguel, aflito, grita-me com tristeza, pedindo-me para informar o meu pai, de que tinha sido preso. Ia ser devolvido a Espanha e a Franco e seria fuzilado, tendo sido denunciado pelo traidor Carlos, aquele que até então lhe dera abrigo.
Fiquei a saber que se praticava no mundo barbaridade sem nexo. Em casa contei o que ouvi da boca daquele pobre de Deus, que ousara lutar pela liberdade do seu País e tomei conhecimento que ele era fugido da guerra de Espanha e, indocumentado, se refugiara em Portugal. Senti arrepios de frio por achar que aquele homem, e pai, nunca mais teria possibilidades de falar comigo nem acariciar o seu menino, que não via sei lá há quanto tempo.
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