16.2.09

O LEITEIRO

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No passado sábado, comemorou-se o dia dos namorados.
Este é o meu contributo.
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Conheci a “nena” à porta do cine-teatro Éden, na praça dos Restauradores. Esperávamos que a bilheteira abrisse. O filme, já não recordo o nome, era em 3 dimensões.
Uma novidade que segundo diziam vinha revolucionar o cinema. As filas eram enormes e comprava-se o bilhete com antecedência. Comprei lugar de plateia e constatei que a menina ficaria ao meu lado se tivesse adquirido para o mesmo dia.
Sorte dela, sorte minha? Foi tiro na muge.
No Sábado seguinte, às 15,30 da tarde, lá estávamos lado a lado cada um na sua poltrona, de óculos na mão à espera do início da sessão.
O Zé nunca foi coxo para iniciar uma conversação. Cumprimentei-a com a vénia que se impunha e memorizei a sua blusa decotada. A saia da época, abaixo do joelho. A mini ainda não tinha aparecido (tenho pena).
Reparei que os seus óculos destinados a ver a película tremiam na sua mão, tendo perguntado se estava nervosa. Respondeu que tinha receio de se assustar com o desenrolar da “faena”.
Bela entrada (digo agora)! Tentei acalmá-la, acrescentado que estava ao seu lado e a protegeria se algo de mal sucedesse. A partir daqui, já sabem como é, palavra puxa palavra e a porta escancarou-se para estarmos à vontade e divagarmos sobre qualquer assunto…
Os meus temas estavam sempre actualizados. Não eram muito variados e a tecla era sempre a mesma. Se namorava, se… e se…e a resposta foi «NÃO». Como é evidente fiquei mais à vontade, preparei o carreto, enrolei a linha, pus a minhoca no anzol, tomei balanço e lancei a cana. Agora era uma questão de ter paciência para ver se o peixe picava e se eu tinha músculo, capacidade e imaginação para o puxar para cima sem o deixar fugir.
Com o desenrolar do filme, que não era de terror mas tinha bonitos efeitos especiais, íamos trocando impressões sobre o mesmo e tocávamos no braço ou do outro, alargando os nossos laços de confiança. Acabada a sessão, acompanhei-a a pé até ao bairro dos actores, onde morada, ali bem ao lado da Alameda D. Afonso Henriques.
Passámos a trocar telefonemas e iniciando o Zé mais uma aventura amorosa, que nessa altura, com 23 anos, a contagem já prosseguia a bom ritmo.
Às quintas-feiras, os nossos encontros eram no Jardim Constantino. Aos sábados batia-mos os cinemas Rex, Capitólio, Odeon, Condes (no fundo como calhava em função dos filmes) e aos domingos Jardim Zoológico, Estufa Fria ou Jardim da Estrela. Era assim passado o nosso idílio, com as semanas a correr vertiginosamente e sem os seus pais terem conhecimento dele.
Estávamos mo Inverno e quando trocávamos telefonemas, que ela fazia sempre com pressa para não aumentar a conta telefónica de casa, deu-me conhecimento de que os progenitores, ele polícia de costumes (aí engoli em seco) e ela doméstica, saíam no próximo sábado logo pela manhã para assistir ao carnaval de Torres Vedras, voltando já noite alta e que seria uma boa oportunidade para eu a visitar pela primeira vez na sua casa.
Fiquei nas nuvens e as marteladas na minha cabeça a lembrar-me a toda a hora aquele acontecimento não me deixavam um momento sossegado.
Levantei-me “temperano”, merecendo por isso um reparo da mãe Júlia, que deveria estar algum burro para morrer por me levantar tão cedo.
Depois de ter feito um telefonema (confirmação para saber se o caminho estava desimpedido), comprei numa pastelaria meia dúzia de pasteis de nata (ainda hoje sou doido por eles) e avancei, qual tropa de elite a caminho do Kosovo.
Fui recebido à porta, com abraços, beijos e sei lá que mais. Ficou impressionada com a minha lembrança e ofereceu-me um chá.
E pela primeira vez na minha vida almocei em casa de jantar alheia, com a maior despreocupação do mundo e sem que os donos da dita tivessem conhecimento, com a mesa decorada a preceito. A queridinha arranjou um petisco que nunca tinha provado (repolho com salsicha, daquelas grandes, compradas avulso). Não devia ter jeito para a culinária.
Comi. Não me soube mal nem bem, mas disse que estava divinal. Todavia, tinha imaginado que a comida daquele dia, tão especial, iria ser febras.
E foram tantas as mesuras e as delicadezas, que o amor começou a derreter-se, acabando por nos deitarmos ao cair da noite em cima da sua cama, vestidos, tendo tirado somente os sapatos e o casaco.
Conversamos, fizemos juras ao futuro e, numa audácia incontrolável, puxei as calças para baixo. Nesse preciso instante tocam a campainha insistentemente.
Pulámos da cama, puxo as calças para cima sem apertar os botões (e penso: é o polícia, estou lixado), calço os sapatos deixando os atacadores pendurados, visto o casaco só com uma mão, dado que a outra segurava as calças, coloco a gabardina de fazenda debaixo do braço, olho para a “nena” que me pega num braço e me levou para a copa.
Dá-me este recado (isto tudo em velocidade mais rápida do que o TVG) eu vou ver quem é, se for alguém para entrar abres esta porta e sais por aí.
Enquanto oiço os seus passos no corredor a caminho da porta de entrada, encontrava-me ainda no estado como atrás descrevi. Vejo que a porta tinha um fecho de correr em cima e outro em baixo, ambos fechados, bem como a fechadura, esta, a duas voltas.
Tudo me vem à ideia: como consigo fazer isto em tão curto espaço de tempo e como vou para a rua neste estado.
A campainha não para de tocar, ouço a Joana a dar as voltas na fechadura e, na porta que eu tinha à disposição para me pirar (nem ainda hoje sei onde é que ia dar), ouço do lado de for um tilintar, batem à porta com força e anunciam: LEITEIRO…
O tilintar era as medidas de alumínio presas com uma corrente a baterem na bilha.
Digo-vos de verdade: as tripas deram-me uma volta, senti uma vontade enorme e tive a sensação de que me ia cagar todo.
A Joana esclarece a pessoa que tocava, que desculpasse mas tinha de atender o leiteiro, fecha a porta e corre trocando comigo de posição.
Aperaltei-me, abotoei as calças, os sapatos, o casaco, vesti a gabardina e de despedida devo ter dado o beijo mais frio da minha vida.
Cheguei à rua e senti-me feliz ao receber o frio gelado do mês de Fevereiro…
Safei-me de boa…e o namoro tinha acabado na hora, no minuto, no segundo, em que o meu calcanhar do pé que ficou atrás, saiu a porta principal da Joana.
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2.2.09

Iscas com "elas"

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Estávamos no mês de Agosto de mil novecentos e oitenta e dois. A “Dona” e o Zé esperavam ansiosos o nascimento do seu segundo rebento, que viria ao mundo nos primeiros dias de Setembro.
A coisa podia estar feia, pois o rapaz mostrava-se irrequieto e tinha enrolado ao pescoço o cordão umbilical. Duas vezes por semana, deslocávamo-nos ao consultório médico situado na rua Latino Coelho para observação.
Todo o cuidado era pouco e com o tempo a passar redobramos as preocupações, mas saímos sempre com os nossos corações tranquilos pois o “petiz”, se calhar já jogando à defesa, resolveu não dar mais cambalhotas.
Fomos fazer a última revisão e marcar a data e o local onde se realizaria a cesariana que se impunha, para evitar alguma surpresa desagradável.
O Zé tinha um comportamento igualzinho à grande maioria dos pais e tratava de animar a sua querida, dando-lhe palavras de animo, mas no fundo sentia-se todo acagaçado e sem saber o que fazer.
A “Dona”, que sempre foi uma mulher de coragem, ouvia as suas palavras, sorria e dizia que seja o que Deus quiser.
Ao arrumar a viatura no separador central na rua Latino Coelho, cá na Lisboa, encontro o actor Eugénio Salvador, agora já falecido, acompanhado da sua segunda esposa, Odete Antunes, que procuravam também lugar para estacionar. Ambos bem conhecidos do Zé e com quem mantinha lanços de amizade de longa data.
Demos ali um bom bate-papo, que foi bem demorado pois deu tempo a que a “Dona” fosse à consulta e voltasse.
Na altura levei um “raspanete” por não a ter acompanhado, até porque iria ser marcado o dia do nascimento do “pimpolho” e eu teria de evitar que fosse à quinta-feira, meu dia azarado. O “amor” sabia disso e marcou a data para a sexta-feira da semana seguinte.
Ambos queríamos comer e, havendo ali mesmo em frente um restaurante, cujo nome é parecido com “Palheiro”, resolvemos entrar para saciar a nossa gula.
Estava feliz, sentia aproximar-se a data do nascimento e isso fez aguçar o desejo de mulher grávida. Pediu iscas, não recordo se com ou sem “elas”.
Normalmente é um prato já confeccionado em recipiente de barro e em dose individual, bastando aquecer e servindo-se imediatamente. O Zé, vinte e seis anos depois já não recorda o que comeu, mas garanto que iscas não foram.
Segundo dizia, estavam deliciosas e aquele molhinho com um gosto como nunca tinha provado. Ricas de morrer…
Insistiu para eu molhar o pão e provar. Recusei e quase a vi amuar por isso.
Mas estava contente e feliz por a ver comer com tanta satisfação. As iscas já tinham terminado e os bocadinhos de pão iam absorvendo os restos do molho que tanto estava a apreciar.
Era o resto, faltavam somente dois bocaditos pequenos, que pareciam dois “niquitos” de iscas… Não, não pode ser, não acredito, é impossível! Duas baratas estavam no fundo e pouco faltou para serem digeridas… Estava a ver que a criança nascia naquela ocasião.
O Restaurante ainda existe hoje e, tal como naquela altura, não é de preço popular.
Chamei o empregado e disse-lhe que sendo restaurante caro, não era admissível ter baratas.
Perguntou-nos se queríamos outra coisa. Sim, sim, a conta, respondi.
Perdi as estribeiras quando nos apresentou a conta do prato com as iscas, reclamando a falta da inclusão do preço das baratas na factura.
Pronto, pronto, pode ir embora que não paga nada.
Na Clínica de S. Gabriel correu tudo como programado, um lindo menino, e como a mãe estava anestesiada, fui eu o primeiro a dar-lhe um beijo. Ainda hoje saboreio esse prazer.
Acrescento, que naquela época, ainda não havia a concorrência dos restaurantes chineses.
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