29.10.07

A espreita(dela)

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(O verdadeiro nome do pessoal foi trocado)
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Oficialmente e com os descontos para a Caixa comecei a trabalhar em 1948. Era jovem e a empresa para onde fui, estava servida com outros da minha igualha. Mais tarde, desenvolveu-se, cresceu e hoje é uma empresa cotada na bolsa.
Tinha cerâmica, carpintaria, serralharia, ambas mecânica e cível, metalização, uma frota de camiões invulgar, serração, estância, etc., etc... Conforme ia crescendo aumentava o numero dos seus trabalhadores e quando um dia, aí talvez por volta de 1966, resolvi mudar de ares, já tinha ao seu serviço cerca de 500 assalariados. Naquele tempo ombreava com as grandes empresas da mesma especialidade.
A telefonista era uma bela rapariga, esbelta, linda, de 17, 18 anos. O Miguel, um dos Engs da empresa poderia confirmar esta verdade (se não tivesse já falecido), pois passava os domingos, no verão, em Sesimbra na praia do porto de abrigo, observando pelo rabinho do olho aquele monumento andante e pelo outro a sua filhota que com uma pazinha se entretinha a fazer castelos de areia, enquanto a sua esposa dava umas mergulhaças à procura de conchinhas e ouriços do mar. A menina fazia castelos na areia, o papá imaginava castelos onde a princesa encantada estaria clausurada e ele com a espada, armadura e elmo, montado num cavalo alado lutaria com o dragão assanhada e a fumegar, ganhando esta luta, caía finalmente a eleita nos seus braços, e a esposa tinha previsto que ao fim do dia iria fazer um docinho de farófias com claras em castelo, para o pai e para a filha, cabendo-lhe mais do que certo somente uma lambedela no “salazar” (salazar é a peça com que se rapa os recipientes onde se amassa a farinha para bolos).
A Joana, nome da moçoila, coitada, sonhava com outros castelos, lá longe, longe, para os lados do Cabo da Boa Esperança, que afinal se tornaram em Cabo das Tormentas e que também não a fizeram feliz. Isso seria outra história mais complicada do que esta, que não sei em pormenor e é do seu foro íntimo.
Em dada altura, o escritório andava em obras e ficou sem casa de banho (ainda hoje se chama não sei bem porquê, a um cubículo onde existe uma sanita e um lavatório, casa de banho), obrigando os empregados daquela secção a usarem uma no rés do chão e que servia simultaneamente para os do armazém.
Tinha dois compartimentos, ambos exíguos, o de entrada com um lavatório pequenito e no outro uma sanita com tampa de madeira pintada de castanho já descolorida das mijadelas que lhe tinham pregado em cima. Para respirar, e propositadamente, a porta de entrada de cor cinzenta não chegava ao chão, com uma diferença talvez de dois palmos bem medidos, tal como a outra que dividia os dois espaços.
No armazém entre outros, havia um aprendiz, rapaz de 15 anos, cujo nome não recordo, sendo fanhoso e por isso tinha a alcunha de “Pica-Pau”, em homenagem a Walt Disney e era familiar de um dos patrões, que ia observando as idas e vindas da “maltinha” ao banheiro, incluindo como será óbvio a nossa Joana.
Até que um dia, a seguir ao almoço, o “Pica-Pau” estava só e vê a sua vénus, vestida, entrar no banheiro; treme, espevita-se, olha para esquerda, para a direita, pró tecto, e achou que tinha chegado a sua ocasião. Em pleno dia D, qual invasão dos aliados na Normandia, abre a primeira porta muito de mansinho, entra, abaixa-se e espreita por debaixo da segunda, vendo as calcinhas da menina junto aos tornozelos. O rapaz perturbou-se, só aquilo não lhe chegava e tentou ver as quedas de água do rio Zambeze.
A moça ao ver uma cabeça a surdir por debaixo da porta, dá um grito, o “Pica-Pau” bate com a nuca na dita e desata a fugir, por cima dos barrotes de madeira. Alguém o viu, denunciou, e o rapazito tremendo e cheio de medo, lá se apresentou ao seu familiar e patrão.
A notícia correu célere, comentando-se de várias formas, entre elas a humorística e num julgamento sumário e imediato (nessa altura quem é que sabia o que era um processo disciplinar), o “Pica-Pau” foi suspenso por um mês.
Nunca um mês demorou tanto tempo a passar, a malta estava cheia de saudades da presença do rapazote, queríamos perguntar-lhe o que tinha visto, como foi, enfim os pormenores bem desenvolvidos.
Pela socapa, foi nomeada uma comissão para quando do seu regresso, se fizesse o acolhimento de boas vindas e chegado o dia fatal, ele, coitado, com um sorriso murcho e as faces vermelhas, recusou um lindo ramo de ortigas, salpicada com azedas (que dá uma flor amarela) embrulhadas em papel celofane com uma fita de serapilheira com a inscrição de “Prémio Nobel da Espreita-dela”. Evidentemente saltou para a ribalta outra bronca e desta vez o julgamento sumário teve como acusados este vosso amigo que assina Zé do Cão e o Manuel José, com a suspensão de 15 dias a cada um.
Naquela altura, que nos importava a nós sermos suspensos 15, 30 ou 60 dias se ao menos tivéssemos visto a barragem do Limpopo. O certo, certo, é que nem vimos a floresta africana.

12.10.07

Colhões de Molas

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26 de Junho de 1968, já não recordo o dia da semana, mas Sábado ou Domingo garanto que não era com certeza.
Tinha o hábito de diariamente comprar o jornal “Diário de Notícias” e lia-o de fio a pavio, inclusive os anúncios.
Dava-me prazer fazer esta leitura e chamavam-me a atenção alguns que pela originalidade, dava para fazer trocadilhos.
A batatada no ultramar seguia aquecida e não se antevia fim à vista.
Vejam só, que naquela altura uma viagem à Áustria, de autocarro de 19 dias, acompanhada de Lisboa a Lisboa, custava tudo incluído 8.830$00 – Wagons-Lits Cook
Que, na véspera, na Feira de S. João o José Falcão tinha recebido a alternativa na praça de touros de Badajoz, que tinha sido inaugurada a nova fábrica da Imperial Margarina, tendo sido investidos 130 mil contos e que o desinfectante ZAP, enérgico, activo e eficaz, não deixava os galináceos contaminar-se (fazia falta agora).
Na página de necrologia, vinham publicados um montão de participações de falecimentos de Zulmira, Malhou, Torcato, Fidalgo e outros, gente que nunca tinham tido a oportunidade de ver o seu nome no jornal, partiam para o céu dos pardais, prestando-lhe assim a família derradeira homenagem, satisfazendo o desejo que em alguns até já tinha adormecido.
E então depara-se-me este anúncio. “COLHÕES DE MOLAS”. Próteses dentárias para as mãos, braços, pernas, pés e até pénis, já tinha conhecimento, agora para colhões e de molas, deixou-me apreensivo. Indicava também que tinham garantia por 10 anos, o que não era mau para a época, mas em 10 anos os gajos não enferrujariam? É que a urina ás vezes escorre para lá e o ácido corrói.
Dois dias depois, pressupondo que o negócio já corria com a “naviarra” a velas desfraldadas, decido-me, pego no telefone e ligo para o numero que lá vinha indicado, perguntando se era ali que vendiam colhões de molas, garantidos por 10 anos.
Extremamente pronta uma voz feminina responde-me, “vá pró caralho seu filho duma grande puta, que os únicos colhões que há nesta casa são os do meu marido, que não são de molas e estão garantidos até ao fim da vida e que nunca vendemos aqui no estabelecimento, colhões de molas nem molas prós colhões.”
Pensei com os meus… ões:
Quem me manda a mim fazer trocadálhos dos carilhos...

9.10.07

Carapaus fritos

O meu amigo J.J. foi à inspecção militar ficou apurado e assentou praça no Quartel de Elvas.
Ir aos confins do Alentejo em 1954 era uma aventura das inolvidáveis, e ainda pior se utiliza-se as camionetas de passageiros, que saíam de Cacilhas, dado que paravam por todas as terras que se lhe deparavam e era festa na aldeia, sendo a única distracção ali existente. Ela levava o saco do correio, as embalagens de encomendas e acima de tudo o desejo de alguém da terra que anunciava a chegada e depois resolvia não ir deixando os familiares e amigos em ansiedade e agitação nervosa.
Na maior parte das vezes 2 a 3 furos pelo caminho, que o desgraçado do motorista e o cobrador tinham de reparar; era enfim uma quantidade de coisas que hoje seriam consideradas anormais, mas que na época era o pão nosso de cada dia.
Uns dias antes da partida, o J.J., rapaz pobre e com dificuldades, andou a visitar todos os seus amigos e familiares. A solidariedade entre os pobres foi sempre coisa boas dos portugueses, tendo o recruta arranjado de dádivas qualquer coisa como 2.000$00.
A irreverência da juventude faz milagres, e o nosso J.J., não esteve com meias medidas, assim que chegou ao Quartel tratou de meter os papeis para se desarranchar. Porquê ficar a comer comida da tropa se tinha 2.000$00 no bolso, era o que faltava, pobre sim, mas tanto não.
Foi chamado ao oficial que daria o aval ao seu pedido, militar de pelo na venta que tratou de avisar o soldado tal e tal que se amanhã quisesse voltar, não o poderia fazer.
Qual quê, tranquilo, porque o J.J. era homem para se aguentar e a tropa não era para toda a vida (na realidade aguentou-se e de que maneira).
Tratou de fazer pesquisa para saber onde em Elvas se comia bem e barato e passou a frequentar uma tasca (agora tasca, que naquela altura era denominada casa de pasto) onde comia conforme os seus desejos e à descrição.
Melhor não poderia haver e até dava para brincar com os colegas de formatura. Claro que os dois mil foram-se esgotando, e o J.J. deixou de ir a casa ver a família. Depois, quando ia almoçar, comia desmesuradamente para compensar o jantar que passou a ficar em branco e finalmente esgotados todos os recursos pedia aos colegas para lhe trazem algo do refeitório do quartel. Quando alguém da família lhe enviava uma carta acompanhada de 100$00, era certo e sabido que havia festa na Cidade e só não ia rezar à patrona do burgo, porque não era homem dado a essas coisas.
Fui visitá-lo, era bom e grande amigo, teve o cuidado de não contar as dificuldades que passava, convidei-o para almoçar e levou-me ao tal restaurante, onde como cliente já era conhecido.
Era inverno, Elvas é Cidade do interior, o frio enregelava o nariz e eu com a samarra bem aconchegada seguia atrás do J.J., já que ele conhecia o caminho e eu não.
As botas da tropa batiam na calçada apressadamente e o capote do militar, coçadíssimo, abanava.
O Gerente, pessoa bonacheirona, perguntou se ele tinha estado doente, em virtude de há uns dias que não aparecia.
Sentamo-nos e o menu era único: jarrito de vinho, pão alentejano (que saudades) arroz de grelos e carapaus fritos, à discrição.
O J. J. comeu, comeu até não poder mais e pede nova travessa de carapaus fritos enquanto eu utilizava o mictório.
Fiquei embasbacado com a rapidez com que comeu aqueles últimos carapaus que deviam estar deliciosos, como hoje já não há. A travessa estava vazia e eu nem sequer lhes tinha visto a cor.
Mais dois dedos de conversa para saborear os últimos momentos da minha visita, chegando a hora de ir embora.
Fui ao balcão pagar, atravesso o estabelecimento à frente com o J.J. a seguir-me e sinto algo que me batia nas pernas, olho para trás ao mesmo tempo que o dono da casa observava o espectáculo, e vejo isto.
O J.J. tinha metido a ultima travessa dos carapaus fritos nos bolsos do capote. Estes, como estavam rotos, deixam sair os ditos tesos da fritura, que lhe batiam nas botas e saltavam à sua frente. Não cheguei a dizer nada, porque o comerciante saiu-se com esta: Oh!.. Sr. J.J. Atão tá a fazeri uma figura triste, atão se me tivessi dito alguma coiisa, eu nãm lhe dava os carapaus?
Ao que o meu amigo responde: - Porra, você era capaz de dar uma vez, decerto não ia dar-me todos os dias.
Os outros clientes desatam a rir, o dono do estabelecimento também e eu nunca mais posso esquecer cena tão cómico-dramática ao mesmo tempo.
Sempre que vejo um militar fardado, olho para as suas botas a ver se delas saltam carapaus fritos.

3.10.07

Consulta em Bragança

A Carlota era uma senhora casada, mãe de 6 filhos, quatro rapazes e duas raparigas que nasceu numa casita, perto de Quintanilha, Distrito de Bragança que os seus progenitores mandaram construir numa pequena quintinha que já tinha sido dos seus avós e lhe foi parar às mãos por heranças sucessivas. Não sabia ler nem escrever, tal como seu marido, dedicando-se ambos ao amanho do campo, que lhes ocupava todas as 24 horas do dia, exceptuando umas 3 ou 4 para dormir.
Os filhotes frequentaram a escola primária da aldeia próxima, até à 4ª classe, e mesmo assim por obrigação da sua presença, não fosse a segurança social cortar-lhes o abono de família. Ajudavam portanto os pais na lida da agricultura.
Uns porcos e umas ovelhas eram o complemento do sustento daquela família, que viveu sempre com muita labuta e dificuldades. A criançada, apresentava-se sempre na escola com a roupa lavada, os sapatos com algumas “tombas” e às vezes com a lamparina acesa no nariz, mais por sua culpa que dos pais. Nessas ocasiões passavam com a manga da bata escolar pelas ventas, ficando a manga com a matéria agarrada, até secar, que a mãe quando a lavava se via aflita para a retirar.
Uma das meninas, a mais velha, quando fez 14 anos foi despachada por recomendação para casa duma família em Lisboa que tratou de lhe arranjar sítio onde passou a servir e portanto a ganhar qualquer coisa. Era a época das “sopeiras” que as patroas exploravam miseravelmente a troco da sopa e de um pequeno ordenado, que na maior parte dos casos nunca pagavam. Todavia orgulhavam-se de ter empregada de avental e touca, quando as acompanhavam ao mercado da 24 de Julho e vinham com a alcofa a abarrotar de compras.
Os anos foram passando e o Carlos, assim se chamava o consorte da Carlota, não obstante estar mais velho e cansado do trabalho rude que sempre teve, gostava de cumprir com as suas obrigações de marido, não deixando a esposa descansada. A mulher vivia numa angústia tremenda com receio de ter filho, numa altura em que os outros já eram homens.
Soube, numa das idas mensais a Quintanilha que no Posto da Caixa, em Bragança, que havia consultas de Planeamento Familiar, para não ter filhos (foi assim que lhe disseram). Aconselhou-se com o marido e lá partiu um dia, muito cedo, com o seu xaile antigo mas novo por falta de uso, e quando chegou o movimento já era grande frente ao guiché.
O nervoso miudinho apoderou-se-lhe, e a vergonha pela marcação da consulta fazia-lhe tremer as pernas. Esqueceu-se completamente de como se chamava a consulta, sabendo somente para que servia e qual a sua origem.
Quando a empregada lhe pergunta que consulta desejava, a Carlota corou, a saliva secou-se-lhe, tendo balbuciado “Quero uma consulta para Fodiamento no ar”.
Teve a consulta, voltou a casa encantada com as explicações que a Médica lhe deu, só o marido nunca foi capaz de a possuir no ar, e até hoje nunca entendeu que raio de posição seria aquela, admitindo que eram esquisitices da vida moderna.