25.8.08

Acidente de Trabalho


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Meus caros amigos:
Nas andanças pelo mundo, o Zé foi aventureiro, namoradeiro, “cafageste”, como dizem os brasileiros, sei lá que mais coisas poderia acrescentar.
Fui um assíduo frequentador do Parque Mayer. Tinha pelas revistas à portuguesa um carinho muito especial. Não faltava em noites de estreia e houve algumas que as vi tantas, tantas vezes, que tenho a certeza que era capaz de substituir algum actor que faltasse. Havia um motivo para não deixar aquele recinto: é que a cantiga da Anita Guerreiro diz que os rapazes cheiram-lhes a raparigas e era esse cheiro que eu sentia quando lhe passava perto. O cheiro às coristas das revistas.
Tinha um amigo (julgo que já faleceu) que possuía uma casa com muitos quartos na rua Fernão Lopes, ali mesmo ao Saldanha, prédio já demolido, como todos os outros do mesmo lado dessa rua, que alugava quartos às coristas dos teatros do Parque Mayer.
Portanto já estão a ver! Cheiro a raparigas, coristas, e contacto fácil na casa do amigo que me as apresentava, deixando depois por minha conta os “ I love you”.
No prédio do amigo, no tempo do agarra, agarra, chegou a estar lá instalado o mrpp nos dois rés dos chãos, esquerdo e direito, tendo se calhar na altura sido ponto de encontro para o Durão Barroso, actual presidente da Comunidade Europeia, quando seu militante. De quando em quando havia visitas de outros partidos e a bordoada estalava por todo o lado, chegando alguns apaniguados do mrpp a refugiar-se, vindo pelas escadas de ferro das traseiras, em casa do meu amigo Sousa que residia no 3º andar esquerdo.
Os esgotos dos prédios antigos eram exteriores, de manilhas grés, feitas na cerâmica do Carvalhal, povoação situada perto de Terras Vedras. Era inestético, é verdade, mas em contrapartida quando por qualquer razão era necessário mexer-lhe, seria fácil a sua reparação. Estavam sempre situados nas traseiras e portanto não se viam, sendo as ligações das referidas manilhas feitas com cimento.
Um dia, nesse prédio houve uma rotura num desses canos ao nível superior do rés-do-chão, sendo necessário proceder à sua reparação.
O artista (pedreiro), no dia combinado com o proprietário do prédio, chegou cedo, montou escada que encostou à parede, subiu para confirmar bem o local da fissura, estudou a maneira mais conveniente de fazer um trabalho perfeito, preparou toda a ferramenta e atirou-se ao osso.
Antes porém, e não poderia ser de outra maneira, foi a todas as casas do lado esquerdo do prédio e recomendou que não fossem usados os esgotos, naquela manhã, porque ele ia proceder à sua reparação.
Todos os inquilinos tomaram conhecimento do facto e prometeram respeitar aquele pedido.
O homem iniciou o seu trabalho em cima das escadas, batendo com escopo e martelo ao nível da sua cabeça, partindo o grés da manilha, para poder fazer um remendo eficiente e definitivo para acabar com a anomalia.
Aí pela volta das 10:30, o Zé sobe as escadas do amigo para lhe fazer a costumeira visita, ouve a batucada do pedreiro, mas como é evidente não ligou ao assunto, até porque o desconhecia.
Chegado ao 3º andar, bate à porta, cumprimenta o amigo, que aproveitando a oportunidade da sua presença, pede para ficar ali em casa por 20 ou 30 minutos, dando-lhe assim a possibilidade de dar um pulinho ao Mercado do Matadouro, ali ao fim da rua, comprar abastecimentos para a comida do dia.
Claro que sim, e fico guardião do casebre pelo tempo que o Sousa se deslocava ao mercado. Judiei um pouco com um papagaio que tinha na gaiola preso por um pé e deu-me vontade de ir à casa de banho.
Na parede ao lado da sanita, existia uma janela que estava aberta e que dava para o saguão, ouvindo-se perfeitamente a labuta do pedreiro a arranjar a deficiência com esmero e perfeição, coisa a que eu estava perfeitamente alheio.
O Zé assenta-se e não é necessário dar mais explicações, porque todos nós sabemos o que o Zé fez. Acabado que foi o seu serviço, puxa a corrente do autoclismo e não tarda, que sente alarido, espreita pela janela e vê o pedreiro a ficar engasgado com a enxurrada que veio pelo cano abaixo.
Nesse preciso momento entra o Sousa, que ao ter conhecimento do uso inadequado da sanita ficou preocupado e tem este desabafo “ coitado do senhor, a fumar de charuto, quando nem toca em cigarros”.
Aí, não resisto e dou uma valente gargalhada, imediatamente abafada pelo barulho que ouvimos nas escadas.
O “sinistrado”, com a maceta na mão (coisa aí de 1 kg.) sobe-as e bate em todos os andares do lado esquerdo a perguntar quem tinha feito um trabalho daqueles, e que lhe dava com a maceta nos “.ornos” que o lixava.
Com os acontecimentos em desenvolvimento acelerado, optei em fazer figura de cobarde, não fosse acabar nas urgências do hospital de Santa Maria, ou estendido dentro de uma gaveta no piso -2.
O Sousa (era especialista em simulações) responde que dali não foi, porque ele nem estava em casa, tinha acabado de chegar naquele momento.
O certo é que o pedreiro desalvorou (sem ter feito o gosto ao dedo). Nunca mais lá apareceu e o dono do prédio teve que contratar outro para acabar o trabalho.
Todo o cuidado é pouco, até em casa e sentado na sanita um homem não está descansado, até naquele lugar pode originar um acidente de trabalho.
A seguradora deveria ter tido alguma dificuldade em atribuir, para estatística, o acidente na secção de Domésticos ou de Construção Civil.

11.8.08

Dor de dentes

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Em certo mês do ano de 1976, encontrava-me com uma dor de dentes.
Naquela altura, havia poucos dentistas no nosso País e uma consulta, paga a peso de ouro, era marcada muitas vezes com meses de antecedência.
A todos os dentistas que conhecia, já tinha batido à porta, sem resultado. Até que lembrei-me de repente da “consulta que resulta” e catrapus, pego na lista telefónica das páginas amarelas e procuro anúncio de dentistas. Eram duas páginas cheias deles e tratei de procurar um que fosse o mais perto possível do local onde trabalhava, ali para os Olivais, mais propriamente onde hoje está instalado o Centro Comercial Vasco da Gama, em plena Expo 98.
Logo no primeiro da lista, situado na Avenida Duque de Ávila, em Lisboa, informou ser possível ser atendido. Perguntam qual o dia que desejava e a hora pretendida. Caí das núvens e não me fui abaixo das pernas porque estava sentado. Como era possível, bater a tantas portas não conseguindo e, através da lista telefónica, tinha-se-me aberto o céu! Respondi: "logo de tarde, pelas 14 horas, aí estarei". Mesmo assim a senhora informou-me que se não fosse às 14 era na hora que eu quisesse.
Desligo o telefone e fico a matutar. Será que liguei a número errado e alguém do outro lado esteve a gozar comigo?
Confirmei, e para justificar a chamada, informei que a hora que tinha marcado não era a mais conveniente, pelo que perguntei se seria possível para amanhã e a que horas?
Com certeza, ficaria para o outro dia e que eu dissesse a que horas me conviria. Fico ainda pior do que já estava e das duas uma, ou o dentista era muito novato e não tinha clientela ou era algum barbeiro-ferrador que tinha vindo morar para Lisboa.
Portanto, foi cheio de medo e incertezas que no outro dia, à hora aprazada, lá me dirigi à Avenida Duque de Ávila disposto ao que desse e viesse.
Inspecciono o prédio, fachada com azulejos azuis, porta de alumínio e nenhuma tabuleta indicando que no rés-do-chão esquerdo existia dentista. Preocupado, constato que uma mulher com lenço na cabeça, um cabaz de vime na mão, com dois galos cujas cabeças carecas saíam do dito, tocava a campaínha da porta do tal rés esquerdo.
Se eu estava preocupado e cheio de dúvidas ao ver aquela cena ainda mais me preocupei. Se os galos não têm dentes, que fazia aquela mulher a bater à porta dum dentista?
Será para porem prótese? E logo aos dois? - Penso com os meus botões.
Aproximo-me e perguntei à senhora se conhecia o dentista e se era bom profissional.
Ah!... De maravilha, responde-me. Aliviei-me e fiquei tranquilo, só a dor não me largava, mas o espírito ficou leve como uma pluma.
A porta abre-se, a mulher, com o cabaz e os “carecas” lá dentro avança, e eu atrás, seguindo a ordem de chegada, fomos recebidos pela senhora que presumivelmente me atendeu na marcação para a consulta. Fiquei à porta, esperando que a fulana das aves fosse atendida e então apercebo-me de duas coisas:
A primeira, era que a da casa julgava que eu tinha alguma ligação com os galos e a sua dona, e a segunda era que a fulana dos animais de capoeira não conhecia o doutor nem ninguém da casa, mas tinha tido conhecimento de que aqueles iam abandonar a dita e, portanto, tentava ver se ficava com ela, razão por que levava os dois bichos para pagar o preço do favor.
O meu coração apertou outra vez, fiquei apático sem saber o que fazer e denuncio que nada tinha a ver com os galináceos, mas, sim, que tinha uma consulta marcada. Manda-me entrar e chama: - João, está aqui o senhor da consulta, continuando na conversa pois a perspectiva de umas canjas não era coisa para desperdiçar. Não fiquei a saber se eles mudaram ou não de dono, se acabaram de churrasco, de fricassé ou com arroz.
Os meus sentidos, a partir daquele momento, ficaram interessados em assunto mais importante. Saído presumivelmente da cozinha, do fundo do corredor, avança para mim um homem já muito velho, o doutor, andando vagarosamente, com uma bata que, em tempos, já deveria ter sido branca, com os cabelos da mesma cor, em pé, um Einstein autêntico. Manda-me entrar para um quarto, o consultório, sem dúvida, mas sem qualquer utilização há muito tempo. O chão, as secretárias, a cadeira do paciente, tudo que era sítio, encontravam-se cheias de envelopes que, vindos pelo correio, nunca foram abertos, jornais nunca lidos eram atirados ao acaso lá para dentro, ficando onde fossem parar. Senti vontade de chorar e fugir de tudo aquilo, mas a dor não me largava e segredava-me que era só mais um pouco de paciência e sacrifício, para acabar com o martírio.
Depois de afastadas as papeladas de cima da cadeira, sentei-me e avisei alto e bom som que não queria arrancar o dente, mas somente um arranjo.
- Combinado, respondeu o doutor, com a sua voz ciosa e vacilante. Acomodei-me, ele pega no holofote, tira a mão e este apaga-se. Coloca a mão e aquele acende-se, tira a mão apaga-se, põe a mão acende-se e diz para mim: Segure aqui. Segurei o holofote, acendeu-se e… agora imaginem, eu de boca aberta, segurando o holofote, e o doutor a arranjar-me o dente, sentindo-me, nessa altura, um paciente sujeito às experiências de um filme de “Boris Carlof”. Na realidade, só numa cena de filme cómico ou num número de palhaços de circo aquilo era possível.
Enfim, acabado o trabalho, e depois de receber a recomendação de, com a língua, não arrancar a massa acabada de colocar, pergunto quanto devia, e aí, mais uma vez, recebo outra surpresa.
- São 20$00. Para quem já perdeu a noção da paridade da moeda, esclareço que 20$00 é igual a dez cêntimos.
Caramba, o homem estava parado no tempo; há quantos anos, não era possível adivinhar.
Dois ou três dias depois, a massa caiu e a dor voltou, talvez redobradamente. Estou angustiado pela impossibilidade de resolver aquele problema tão complicado e que tanto mal-estar me causava, vou a um pequeno estabelecimento de comes e bebes que, nessa altura, existia na Av. 31 de Janeiro, quase esquina com a Avenida da Igreja, em Alvalade, na tentativa de comer qualquer coisa.
Quem já teve dor de dentes sabe que a alegria nos foge, o bem-estar desaparece e a tristeza nos invade.
O pequeno comércio estava cheio, eu, pensativo, esperava o que tinha solicitado, na expectativa de, pelo menos, meter alguma coisa no estômago.
Eis que vejo entrar uma amiga de longa data, que já não via há anos, acompanhada de um cavalheiro e que, ao reconhecer-me, aproximou-se, apresenta o marido e convidei-os a sentar e acompanhar-me na minha mesa.
As conversas da praxe, o que fazíamos, há que séculos não nos víamos, o casamento, o seu rebento, hoje um belo rapaz, já formado. Enfim, todas aquelas conversas que se fazem quando os amigos não se vêm há muito.
Quando nos despedimos, o marido da minha amiga ofereceu, como é hábito, que se algum dia necessitasse dos seus serviços, estaria sempre disponível e às ordens.
Naquela ocasião, com a dor de dente a apertar, pus a mão no queixo e disse: Meu caro amigo, o que eu necessitava, nesta altura, era de um dentista, pois ando aqui há um ror de tempo a penar com uma dor que não me larga.
Eureka, que disse eu... Puxa da carteira, ripa de lá um cartão, mete-me na mão e diz:
- Esteja amanhã nesta morada, às 9 horas, pois eu sou lá dentista e resolvo-lhe o problema.
Nem queria acreditar, mas hoje, tantos anos depois, continuamos a ser bons e velhos amigos e até são os meus padrinhos de casamento.