28.7.08

“Alfa Pendular”


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Sentei-me à frente desta máquina fascinante, com o intuito de escrever mais uma história ocorrida durante esta minha curta passagem pela vida terrena. É certo que ainda cá estou, mas segundo parece já tenho as campainhas celestiais limpas com “solarine”, afinadas, reluzentes e prontas para tocarem quando eu aparecer a bater à porta do céu.
Todavia, fui informado pelo meu subconsciente, que no inferno também preparam festejos e que já há uma quantidade de “cornuditos de elite”, pronto a raptarem-me na hora H, com o sentido de me acolherem definitivamente no seu convívio.
Portanto, eu que já há muito tempo estou preparado para iniciar a viagem, sinto-me constrangido e infeliz por saber a trama que se desenrola nas minhas costas.
Num dos lados o Céu e no outro o Inferno. No primeiro não me oferecem nada e entrarei (o que acho improvável) se tiver sido sempre bem comportado, no segundo oferecem-me uvas moscatel, pêssegos, bananas, anedotas picantes, licor de Ginja de Alcobaça, Tortas de Azeitão, Sardinhas, Tripas à moda do Porto, arroz de lavagante e voltas ao Mundo sem parar acompanhado de mulheres, mulheres muito lindas e boas como o milho.
Encontro-me pois num “tri-lema” e não estou a descortinar como vou sair desta enrascada. Julgo até que a dar-se o rapto não tenho alternativa, já que as tropas do Céu não estão tão preparadas e não possuem material bélico tão sofisticado com as do Inferno.
Só me resta então, fazer a minha luta com as armas que disponho, não fazendo caso de ofertas tentadoras, mantendo-me por cá mais uns tempos, gozar a vida e tentando fazer em cada dia uma história de amor e humor.
Nos primeiros dias de Junho passado desloquei-me a Braga e à Galiza, utilizando, até à Capital do Minho, o Alfa Pendular, com saída às sete da manhã de Santa Apolónia.
A carruagem em que viajava tinha muitos lugares vagos, sinal de que havia poucos passageiros, já que aquele comboio é de lugares marcados obrigatoriamente e portanto as faltas são notórias. No lugar de janela contrária à minha, mas uma fila à frente, viajava uma senhora de meia-idade, bem vestida, bem penteada, mãos bem tratadas e unhas arranjadas. Trazia uma pasta com muitas folhas A4 e entretinha-se a passar a vista por elas, fazendo anotações, como quem está a rectificar pontos escolares.
Admiti portanto ser professora, ocupando o tempo de viagem a trabalhar.
Em dado altura, vindo da carruagem bar, surge um senhor negro, grande, grande mesmo e com uma bunda enorme, sentando-se ao lado da professora.
Eu observava o caso discretamente mas com os olhos sempre em busca de algo para me divertir.
A Senhora mexia-se, virava-se de um lado para o outro, não estava bem. Julguei ser pulga atrevida, mas depois fiquei completamente esclarecido. O homem exalava um cheiro nauseabundo e pensei. Como é possível um homem bem vestido, sapatos engraxados, engravatado, pasta tipo “James Bond”, cheirar tão mal. Porque não foi à casa de banho vazar aquele bandulho, decerto, atulhado de couve-flor e feijão preto miudinho que os brasileiros mandam para cá.
Do meu lugar “observatório” apercebo-me que a coisa estava “preta” para aqueles lados, e só terminou quando a senhora resolveu telefonar a alguém que a fosse buscar a Gaia, pois estava agoniada e não podia fazer a viagem até Campanhã.
É que o grandalhão, assim que se sentou, tirou os sapatos para ficar com os pés mais à vontade e consequentemente aliviado de apertos.
Para dar a possibilidade da senhora poder sair, levantou-se mesmo descalço e passou ao corredor, vendo nessa altura, em cada uma das suas meias, dois enormes buracos, um nos calcanhares e outro à frente nos dedos grandes.
Em Campanhã esperava-me uma nossa “blogueira” que me queria conhecer, acompanhada do marido, de um dos filho e de uma adoptiva malhada e orelhas caídas (já é estrela, pois aparece com frequência na net), onde no futuro irão acampar um casal de carraças, que irão dar continuidade à sua espécie.
Cumprimentámo-nos rapidamente e fiz-lhe referência que era capaz de ter nascido uma história naquela viagem, e, não fosse ela colocar-me a mão nas costas e empurrar-me para o comboio, o Zé teria ficado em terra…
Portanto, meninos e meninas, nada de tirar os “chanatos” em publico, porque o sulfato de peúga tem um cheiro que incomoda todo o mundo.

15.7.08

Margaridas portuguesas nos Jardins de “Alhambra”

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Todas as histórias que o Zé vos contou até agora, tiveram um final feliz.
Não é com o intuito de variar, mas, pelo menos, contar uma que me marcou durante algum tempo, até me meter noutra, e que agora à distância em tempo acho que deve ser contada.
Pensei maduramente se deveria ou não contá-la e cheguei à conclusão que os amigos o merecem. Espero que as gentes femininas delirem e estou preparado para um puxão de orelhas.
O Zé, que sempre foi bom rapaz, filho de boas famílias, respeitador e cumpridor das suas obrigações, asneou e meteu-se numa alhada de se lhe tirar o chapéu.
Todos nós temos uma idade de ouro, e o Zé acha que a sua teve o apogeu na casa dos 27.
Namoradas nunca lhe faltaram, mas houve duas que lhe deram água pela barba.
E vamos aos factos.
Aí por volta de 1958 (que saudades tenho desse tempo) comecei a namorar a Margarida. Doçura, morena, cabelo e sobrancelhas bem preto que era a cobiça da rapaziada lá do meu sítio. Sentia-me vaidoso por ela se ter rendido aos meus pés e orgulhoso pela conquista.
As coisas corriam sobre rodas e a moça já falava em casamento.
Só que cá o rapaz não pensava da mesma maneira. O carvão, às vezes, está no fogareiro em chama viva e, noutras, mesmo a dar-lhe com o abano ela apaga.
Talvez porque a chama não estivesse tão elevada, atravessou-se no meu caminho outra Margarida, a quem a partir de agora passo a designar por Margarida II (autêntica Joana d’Arc) mais velha três anos, alta, espadaúda, que julgando chegar a sua hora, se atirou de corpo e alma nos braços do Zé, deixando-o aparvalhado.
Como explicar à mãe Júlia a embrulhada em que me estava a meter, se ela conhecia a Margarida I e também, na qualidade de mãe, gostava dela. Por falta de coragem ou cobardia, resolvi ir em frente, namorando as duas ao mesmo tempo e fosse o que Deus quisesse...
A Margarida I, submissa e ternurenta, e a Margarida II uma “rabiteza” dos diabos.
Tinha a vantagem de nunca me enganar no nome, quando falava da namorada ou quando lhes dizia ao ouvido aquelas coisas doces que qualquer mulher apaixonada gosta de ouvir.
Chegado o Verão, marco com a II férias num hotel em Torremolinos, por 15 dias. Mas, sem ela saber, marco 15 dias para ela e só quatro para mim e em Maiorca, na praia do Arenal, hotel cujo nome já não recordo; marco seis dias para mim e para a Margarida I.
Era necessário estar muito atento para não fazer confusão, já que as datas eram as mesmas.
Quando cheguei a Torremolinos, combinei com o recepcionista do hotel para me informar, na presença da Margarida II, que o meu pai tinha telefonado para eu regressar imediatamente, dado ter uns problemas nas adegas para resolver e a minha presença ser imprescindível.
E certo é que o plano resultou em pleno, tendo vindo no meu Ford Cortina, deixando a Margarida II lá sozinha, com a promessa de voltar para a trazer, ou então nessa impossibilidade, o regresso far-se-ia de autocarro até Lisboa, com uma data de transbordos de meter medo.
Assim que regressei, fui buscar a Margarida I, arrumei a sua bagagem na mala do carro, despedi-me da mãe Júlia, que me atirou um olhar enternecedor de felicidade e lá parti com a querida, com destino a Valência, onde apanharia o barco para a travessia e destino à ilha. A querida ia felicíssima, era a primeira vez que saíamos sozinhos e logo para um destino de sonho (não esqueçam que estamos em 1958).
O golpe estava perfeito, contentava as duas Margaridas. Mas o tal “cornudo da forquilha e que veste de vermelho” fez-me a partida.
O destino atirou-me por Beja, Aracena, Sevilha, Granada… E aqui cometi o grande erro da minha vida. Fomos visitar o palácio árabe “Alhambra”, monumento classificado pela Unesco como património do Mundo.
Quem já lá foi conhece o roseiral à volta daquele espaço, que tem muitos repuxos de água em arco.
É um encanto e sítio adequado para fazer umas “kodaks”, desfrutando de momentos idílicos entre namorados.
A Margarida II, em Torremolinos sem a minha presença e achando interessante alargar os seus conhecimentos do mundo, adquiriu uma viagem em excursão de um dia anunciada no hotel, com almoço incluído e visita ao “Alhambra” em Granada, no mesmo dia.
Aqui, peço a vossa colaboração para imaginarem o Zé todo embevecido a tirar umas fotografias à sua amada Margarida I, no meio das rosas vermelhas daquele roseiral (era mais uma flor naquele jardim), quando apareceu a Margarida II, que sem dizer água vai, prega uma “bolachada” na cara da Margarida I que a moça, coitada, nem soube de que terra era. A minha primeira reacção foi de surpresa e, como a II ia continuar a malhar, corri para ambas e apartei-as, querendo impor moral, quando eu já não a tinha.
O enxame de turistas que estavam por ali desatou a tirar fotografias, parecendo uma noite de gala em Nice, na chegada das celebridades para um festival de cinema, mas ninguém se metia.
A Margarida II, vem de mão aberta para me oferecer uma rosa igual à que já tinha dado à sua homónima e eu só tive tempo de me baixar, quando não, ficava com dois ou três dentes partidos.
A cena seguinte foi as duas a puxarem pelo pólo que o Zé trazia vestido, esfarrapando-o, como se quisessem ficar cada uma com a sua metade (seria o espólio da minha fraca herança a dividir por ambas) e, simultaneamente, com umas lambadas à mistura, em que o Zé era o mais visado, servindo de bombo da festa.
Aparecem dois guardas no local, que, ao aperceberem-se de que o assunto de amores e desamores seria resolvido definitivamente com uns cabelos arrancados e uns borrachos nas bochechas, pôs os três na rua.
A viagem a Maiorca terminou à porta do “Alhambra” e com o desejo manifestado pela Margarida II de voltar já para Lisboa na nossa companhia.
Respondi-lhe que sim, desde que viesse algemada e com mordaça, não fosse dar-lhe outra fúria, mas a Marg. I sentenciou que preferia voltar para Portugal a pé do que com aquela companhia.
O destino da flor II ficou traçado naquela altura (ou o meu), só a vi de relance três ou quatro meses depois e o da I ficou também definitivamente arrumado, quando chegámos a Lisboa.
A viagem de regresso foi penosa e sentia-me arrependido de as ter atraiçoado (se calhar fruto dos sopapos que apanhei).
Ainda pensei em enviar-lhes as fotografias que tinha tirado naquela férias, mas como estavam incompletas, pois faltavam os seus melhores flashes tiradas pelos turistas, armados em papparazzis, desisti da ideia.Nas historias de vida de um homem “nem tudo são Rosas. Às vezes também são Margaridas e com espinhos bem aguçados”.

1.7.08

Carteiro-marreco


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Estória de uma desgraça que dá vontade de rir
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Quem não se lembra dos carteiros que faziam a distribuição de correio a pé, de bicicleta e, já mais tarde, de motorizada?
Eram simpáticos, diligentes e amáveis. Toda a gente os conhecia e às vezes até lhes era pedido que lessem a correspondência, pois os destinatários não o sabiam fazer.
Para ser carteiro, tinham que se inscrever, fazer provas e ter a quarta classe, ao contrário de agora, que, segundo parece, são escolhidos à molhada e executam o trabalho sem nenhum brio.
A maioria, coitados, são contratados por uma semana, 15 dias ou 30 e apenas para substituir em férias ou em doença, sem nenhuma preparação e são atirados para a rua sem sequer lhes dizerem ou ensinarem a responsabilidade que têm sobre os ombros.
Por estas e por outras é que o País está tão mal servido por um serviço que, sendo público, é de tamanha responsabilidade.
O Manuel era carteiro já há muitos anos. Era homem honesto, estimado por todos e a todos fazia favores de mãos abertas.
Tinha um defeito nas costas e, por isso, toda a gente lhe chamava marreco. Era pobre e nas horas vagas fazia uns recados, tratava de umas papeladas nas Finanças, nas conservatórias, pagava a luz ou a água. Enfim... lutava pela vida, já que ela sempre lhe tinha trazido agruras.
Até que, um dia, instalou-se na sede do concelho um solicitador, que tratou imediatamente de apresentar queixa pelo facto do carteiro fazer aqueles pequenos favores à população, que era rural e nem sequer sabia da existência da individualidade queixosa.
E o certo é que o Manuel carteiro lá teve de se sentar no banco dos réus no tribunal da comarca.
Constatou-se depois que o senhor solicitador não tratava das insignificâncias que o Manuel resolvia e que o tribunal, cumprindo a lei, lhe aplicou uma condenação com pena suspensa por dois anos.
Aos pobres tudo acontece e o Manuel, no cumprimento da sua actividade como profissional dos CTT, foi, em Arrentela, atingido por uma arvore centenária que lhe caiu em cima, num dia de temporal.
Ficou em mísero estado, esteve internado cinco meses, fui visitá-lo. Tinha amizade por ele e nunca lhe chamei marreco, não obstante ele, às vezes, falar comigo assim:
Oh Zé, anda cá, faz cá um favor ao marreco.
Quando entrei no quarto particular da clínica onde se encontrava, riu-se, ficou radiante com a minha presença e confidenciou-me: “Agora é que eu estou bem. Vê lá tu que até tenho telefone à cabeceira. Só foi pena a filha da puta da árvore não meter caído em cima da marreca, para ver se eu ficava direito”.
Eu que era, e sempre fui muito seu amigo e tinha pena da sua infelicidade, ao ouvir aquele fraseado, desatei a rir e disse-lhe:
Olha lá, em Arrentela há mais arvores centenárias, que se te caem em cima limpam-te o sebo de vez..
Morres, podes ter a certeza, mas tens a consolação de morrer direito.
Coitado, já faleceu, mas com a marreca, e o velho ditado, mais uma vez foi confirmado.
Quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita.