20.10.08

PASSEIO A PERNES



Talvez aí por volta de 1960/61, conheci, na empresa onde trabalhava, um agente de uma empresa de recauchutagem de pneus da Marinha Grande.
Orlando de seu nome, homem trabalhador, muito activo, que tinha gosto pelo trabalho que fazia.
Pessoa de trato fácil, simpática e, portanto, não lhe era difícil granjear amigos.
Não demorou muito tempo que, na minha empresa, os amigos se tivessem multiplicado e daí, certo dia, fez um convite a seis (entre eles, eu) para ir à sua terra, à matança de um porco.
Claro que não é coisa que se veja todos os dias e eu fiquei entusiasmado pelo passeio, pela camaradagem e pela visita a um lugar que não conhecia e que nem sequer alguma vez tinha ouvido falar, assim como a matança, coisa a que nunca tinha assistido.
Um sábado foi o dia escolhido e aos seis, mais o Orlando, juntou-se um seu amigo, que não conhecíamos.
Antes do início da viagem houve a apresentação da nova cara e, quando nos preparávamos para entrar na carrinha, constatámos que no seu interior não existiam bancos para nos sentarmos.
Foi uma surpresa grande, mas a juventude tudo supera e cinco de nós, com o convidado especial incluído, lá entrámos e sentamo-nos no chão do furgão, tendo o Orlando como motorista e o Óscar como seu acompanhante.
Metemo-nos ao caminho, não havia auto-estradas e as nacionais e municipais tinham mais buracos do que uma rede de pesca.
Já estão a ver uma viagem cómoda, confortável, rápida e ainda com agravante da viatura não ter janelas, portanto, tudo às escuras.
O Jonas, mais velho do que eu e que já é vosso conhecido do conto “El Rocio”, fazia parte do grupo e sentou-se ao meu lado, no início da viagem.
Com o andamento, curvas e contracurvas, rolávamos contra as paredes do furgão, sendo um desassossego permanente e sem saber por onde passávamos.
Lá chegámos, inteiros mas bem machucados e sem vontade de fazer retorno em tão incómodo transporte.
Depois, seguiram-se as apresentações à família do Orlando, umas festinhas no lombo do porco e assistir ao ritual da matança.
Recordo que até os animais de capoeira estavam em alvoroço com o barulho e a azáfama de todos a querem fazer parte daquele acto que, na altura, considerei bárbaro e que só tinha visto nos livros do Asterix, quando este apanhava um javali.
Os guinchos do animal tiraram-me a vontade de, mais tarde e aquando a refeição, trincar a sua carne, que estava estupenda, segundo a versão de todos os presentes.
Visitámos a nascente do Alviela, um dos rios que abastece Lisboa, e entretivemo-nos fazendo maroteiras uns aos outros.
Antes de regressarmos, fomos a uma pastelaria onde comprámos uns bolos especialidade da terra, já não recordo se pastéis de feijão, mas pelo menos eram muito parecidos.
O amigo do Orlando comprou quatro dúzias em embrulhos separados de duas cada e disse-nos que um era para a namorada e outro para levar para casa.
Pela noite, alguns, já com o grão na asa, iniciámos o regresso que, para não variar, foi igual à ida, exceptuando que, em dada altura, o Jonas encontrou duas almofadas que andavam, tal como nós, ora para cá ora para lá aos trambolhões e não esteve com meias medidas. Pega numa delas, mete-a debaixo do assento e dá-me a outra para fazer o mesmo. Do mal, o menos, sempre aliviava o rabo daquele pavimento de ferro, às ondas, de que todos se queixavam.
E lá viemos até Lisboa, rindo, contando anedotas, às escuras.
Todos vinham para a outra banda, ou seja para a margem esquerda do Tejo, exceptuando o amigo do Orlando, cujo nome já se me foi há muito, tendo-se apeado ali para os lados do Areeiro.
O carro parou. O Óscar, felizardo, que acompanhava o condutor, veio abrir a porta atrás, coisa que nós não podíamos fazer por dentro, e o dono dos dois embrulhos com os bolos tratou de os procurar.
Como não os encontrou, perguntou onde estavam, sendo entregues pelo Jonas e por mim, as almofadas que nos tinham feito um jeitão, toda a viagem.
Evidentemente que o que tinha sido bolos há umas horas, estavam transformados numa massa informe, com o feitio de umas badanas de cu, e a sair de um deles, pelos cantos, bocados de bolo que se me pegaram às calças.
O moço não podia pegar pelos cordéis que atavam os embrulhos, porque aquilo se desfazia e caía tudo no chão. Olha para dentro da carrinha e diz assim. “Isto é que está um trabalho bonito! O que é que eu faço agora a isto?” Realmente, aquilo parecia mais duas boinas bascas do que um pacote com bolos; só lhe faltavam as piroletas em cima.
O Jonas, com a maior descontracção do mundo responde assim. “Na hora de repartir os bolos, sempre chega mais um para comer. Assim, este inconveniente até te traz vantagens. Cortas à faca, dá para todos e fazes do tamanho que desejares. Como vês, aqui há solução para tudo”.
Sem dizer mais nenhuma palavra, o rapaz aproxima-se da cabina do condutor e dá este recado:
“Orlando, tu nunca mais me convides para dar passeios com cabrões e filhos da puta iguais a estes”!
Os embrulhos teriam andado num reboliço para cá e para lá e às escuras ainda alguém era capaz de os comer. Sentando-nos em cima, seria a maneira de escaparem a uma “degustacion” forçada. Mantivemos toda a viagem os embrulhos com os bolos debaixo d’olho defendendo-os sem unhas e sem dentes e afinal foi mal agradecido. Deus ensinou-nos a saber perdoar a quem nos ofende e foi isso que fizemos. Regressamos com a consciência tranquila, por ter prestado um acto de louvar…

6.10.08

A TROCA



Naqueles períodos em que o Zé andava tonto, não sabia o que queria, corria atrás de qualquer saia, a mãe Júlia não sabia o que fazer e atarantava-se também.
Queria que eu assentasse, queria que o seu filho seguisse as pisadas do irmão, fosse bem comportado, tivesse juízo, namorada e arrumasse de vez, talvez mesmo quisesse netos.
A nossa grande cozinha quadrada tinha uma enorme mesa de madeira, com dois bancos corridos, um de cada lado. Era ali que habitualmente comíamos as refeições.
Se por um lado eu corria atrás das saias, também não era menos verdade que as saias andavam num desassossego atrás de mim.
Lá no sítio, toda a raparigada sabia quando eu piscava o olho a alguma.
Como era possível que, sabendo elas que o Zé não era de assoar, tivesse tanta procura?
Fazia-me confusão, mas a vida era assim mesmo e portanto aproveitava a ocasião.
Não havia sábado que a mãe Júlia não tivesse que arranjar almoço para as amigas do queridinho. Claro, a coisa constava, a ”nena” tal foi almoçar a casa do Zé e no outro fim-de-semana, em vez de três passava a ser quatro ou mesmo cinco.
A mãe Júlia devia ter as suas preferências, mas observava as corridas, os segredinhos e ficava-se na sua.
Se eu me pirava, desatavam a falar entre si para ver se descobriam com quem tinha saído. E às vezes não acertavam, porque eu tinha o cuidado de lhes dar a volta.
Não sei como, mas na procura de convívio salutar, desinteressado e simpático, apareceu-me uma prima já em terceiro grau, disposta (segundo a sua opinião e das amigas habituais, séria candidata a cortar a fita em primeiro lugar na corrida desenfreada do amor) a vestir a camisola amarela, calções, dar corda às sapatilhas e apresentar-se ao sábado na hora do cozido à portuguesa.
Naquela capoeira já havia galinhas que chegasse, mas uma prima tem lugar assegurado na mesa. Sinceramente, a sua presença cheirou-me a fumaça e não demorou muito tempo que não confirmasse as suas intenções.
Residia numa povoação aí a 7 km da minha, mas para ela isso não era problema, pois tinha pasteleira (bicicleta da moda), com uma rede em cada lado das rodas de trás que era para não prender a roupa.
Passou a chegar sempre primeiro do que as outras e, sendo familiar, movimentava-se com desembaraço pela casa, sabendo por isso uma ou outra novidade.
Se eu não aparecia, era ela a primeira a indagar, a coscuvilhar para onde fui e com quem.
Era ela que intrigava, metia o veneno às outras e portanto estava a meter-me a vida num inferno.
Um dia, disse-me que no domingo próximo faria 20 anos e queria almoçar comigo a sós e sem o conhecimento de ninguém. Que sim, que contasse, pois iríamos os dois fazer um fim-de-semana a Badajoz. Ficou nas nuvens e cacarejou perante as outras durante toda a semana.
Comprei um broche (este em forma de papagaio, vindo expressamente da selva amazónica) para lhe oferecer, mandei embrulhar e meti-o no porta-luvas do carro.
Na véspera do dia aprazado partimos rumo a Badajoz, levando quase quatro horas, mais alfândega, para nos instalarmos no Zurbaran, unidade hoteleira de 4 estrelas. No quarto lavei-lhe as costinhas a seu pedido. Verdade que não ia muito à bola com aquela cara e feitio, mas já que estava, deixei estar e portanto seja o que Deus quiser amanhã se verá.
Depois de jantar saímos para dar uma volta, mas Badajoz ainda hoje tem pouco que ver, fará naquele tempo. A calle S. Juan, junto da Catedral, era o melhorzinho da Cidade e a “Alba” onde todos os portugueses compravam caramelos e brandy Pedro Domec era visita obrigatória.
Recordo bem. Numa farmácia mesmo ao lado da “Alba”, comprei uma pasta dentífrica, daquelas que quando se apertava saía com duas riscas à cores. Era novidade e ainda não tinha chegada à terra dos parolos (a nossa). Embrulhadinha, meto-a no porta-luvas do carro.
Dormimos alguma coisa. A moça tinha insónias e estava preocupada com medo que os seus pais viessem a descobrir que não tinha dormido em minha casa.
Mas aí já era tarde, o comboio que o Zé tinha apanhado seguia em velocidade acelerada sem admitir qualquer possibilidade de travagem, caso contrário podia ocasionar algum descarrilamento.
Quando partimos de regresso ainda o sol ia alto, mas tinha por hábito nas minhas viagens chegar sempre em noite cerrada para evitar alguns mirones indiscretos.
Já bem perto de casa, a Gertrudes faz-me lembrar que afinal tinha passado um fim-de-semana comigo, coisas que para ela era inolvidável, e que eu nem sequer lhe tinha dado os parabéns pelos seus anos. Anos que tinha guardado para mim (não pensem mal).
Dando atenção ao trânsito, disse-lhe que me tinha preparado para lhe fazer uma surpresa e que no porta-luvas havia uma prenda para ela. Pegou-a, não a abriu, mas pregou-me uma beijoca tão lambuzada de agradecimento que tive de passar com manga da camisa para a limpar.
A partir daí e até chegarmos, era outra mulher. Despedimo-nos, com a promessa de não falarmos às outras rançosas do nosso passeio, que ficariam ruídas de inveja se soubessem.
Dois dias depois, retirei a pasta dentífrica para lavar os dentes e, no seu lugar já quase asfixiado e algumas penas a cair, encontrei o broche que tinha comprado para oferecer à priminha.
Lembrei-me imediatamente do Eça de Queiroz, quando por engano trocou a relíquia vinda da Terra Santa e destinada à titi.
Até hoje, nunca tugiu nem mugiu, nunca mais foi à minha casa e nunca quis aceitar falar comigo para uma explicação.
Eu não tive culpa, ela é que pegou no embrulho errado. Mas que passou a andar com os dentes mais branquinhos, isso é incontestável.