18.1.10

CAÇADA COM "LARADA"

Esta aventura ocorreu talvez aí nos fins dos anos sessenta. O Zé trabalhava na mesma empresa onde ocorreram algumas das cenas que aqui tenho relatado. Os patrões eram caçadores de meia tigela, mas aperaltavam-se todos e até colocavam uma peninha de perdiz no chapéu de feltro comprado na espingardaria A.M. Silva, sita na rua dos Correiros ao fazer esquina com a rua da Betesga. Noutras palavras, onde é agora uma casa de sandes, quase em frente ao centenário restaurante João do Grão, cujos proprietários são naturais de Ponte Sampaio – Pontevedra, onde ainda hoje o Zé gosta de se banquetear.
Certo dia, não sei porque carga de água o Zé e mais uns tantos empregados, fomos convidados para ir à caça com os patrões, numa propriedade que um deles possui, lá para os lados de Montemor-o-novo.
Claro, sangue na guelra, rambóia pegada, não houve quem se negasse. Alguns pediram espingardas emprestadas (tanto lhes fez, não apanharam nada), mas o Zé e um compincha de aventuras (o mesmo que fez a salada, no meu conto “El Rocio”, de 03.06.08) resolvemos ser apenas espectadores, não fosse o diabo tecê-las e, sem querer, ainda apanharmos com uma chumbada no coiro e termos de ir direitinhos para o Hospital de Évora.
A viagem decorreu como previsto, mas depois de combinarem os sítios onde cada um dos inaptos caçadores se iria colocar, e partindo para os referidos locais, o Zé e o Jonas ficaram a olhar um para o outro sem nada para fazer e até na expectativa de nem almoçarmos, dado o encontro de almoço ser muito longe do local onde estávamos.
Ficámos a fazer guarda aos vários automóveis onde tinha sido feita a viagem e reparámos que uma das casas, ali perto, era o celeiro da quinta. Com o sossego foram aparecendo algumas galinhas e perus, depenicando por aqui e por ali.
Eureka, aqui está a nossa caçada e nem sequer precisamos de arma de qualquer espécie, dizia o Jonas. Já vamos ver, dizia eu. Primeiramente vamos ao celeiro, enchemos os bolsos de milho, abrimos a porta da frente de um Dodge com rabo de peixe de um dos patrões, e espalhámos o milho em carreirinho no sentido da porta aberta. Em cima do banco, uma mão cheia e preparámos as nossas garras afiadas para, na hipótese provável de algum peru entrar, fechar a porta e bateríamos o recorde em kg de caça apanhada.
Íamos ser os heróis daquela caçada e já víamos os colegas cheios de inveja pelo nosso feito.
A coisa até não correu mal e o previsto seguia com sequência. Um dos perus, patada aqui, patada ali, vai comendo o milho, chega junto à porta do carro e, como é alto vê o cereal a luzir, dá um pulito, salta para o banco. Esperámos que se ajeitasse melhor, demos uma corrida e fechámos a porta. O animal estava tão entretido a comer que nem olhou para trás, limpou o banco, deu uma passada direito à outra porta que estava fechada (os nossos corações batiam apressadamente), coloca-se em cima do vidro, já que não tínhamos reparado nesse pormenor (o vidro estava baixo) deu uma valente “larada” que caiu em cima do banco e salta para a rua.
Deu-nos vontade de rir até às lagrimas, todavia não o fizemos, porque afinal um estúpido peru, comeu, “larou”, partiu para outra e ainda fomos nós que tivemos de limpar o estofo do popó.
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4.1.10

Tourada em Badajoz

A juventude da minha época divertia-se à grande e à francesa. Os tempos eram outros, a oferta muito menor e portanto tínhamos de puxar pela “mona” para saber onde iríamos gastar os poucos tostões que o nosso bolso, sempre vazio, às vezes escondia no recorte da costura.
Este vosso amigo tinha acabado de comprar uma moto da marca Triumph e estava desejoso de ir fazer quilómetros para fazer o gosto ao “rabiosque” e, em segundo lugar, digo-vos que a sensação de liberdade por conduzir um bicho daqueles era o máximo, atendendo a que tinha acabado de tirar a carta de condução de motociclos com cilindrada superior a 250 c.c. Noutras palavras, era candidato devidamente autorizado através do documento oficial a conduzir toda e qualquer motocicleta, fosse de que cilindrada fosse. A partir daquela altura, também se candidatava a esborrachar o nariz contra qualquer pára-brisas de viatura automóvel, ou com uma derrapagem estatelar-me chão fora e ser candidato a comprar fato novo em estabelecimento de fanqueiro no Largo de S. Paulo, em Lisboa, local onde nasceram os primeiros pronto-a-vestir em Portugal.
O espirito de aventura, o sentir a deslocação do ar, o abanar das orelhas, o peito arrefecer, passar por localidades ufanando-me daquele veículo a reluzir, era o máximo para um “puto” acabado de fazer vinte anos e, com um companheiro tão aventureiro como eu, partimos para Badajoz com uns míseros “tustos” para assistir à Feira do S. João, naquela pequena cidade espanhola (naquela época era uma cidade ainda marcada pela devastação da guerra civil). A cidade estava com ar festivo e foi aí que pela primeira vez comi um “cachorro” quente, provei um “pincho” e me vi sem dinheiro para comprar a gasolina que me daria cobertura para o regresso.
Festa em Espanha que não tenha uma tourada, ainda hoje não pode ser considerada como festa, e povoação que se atreva a organizar qualquer evento que não meta um par de bandarilhas e um nome sonante de toureiro da actualidade, é festa predestinada ao fracasso.
Nomes grandes do toureiro mundial eram Diamantino Vizeu e Manuel dos Santos. Este iria actuar na já velha praça de touros de Badajoz, de tão má memória para os combatentes da guerra civil, pois milhares de adversários de Franco foram metidos à força naquela praça e massacrados a tiro, pelas metralhadoras do ditador/tirano. O mesmo acontecera a quem se refugiou na Catedral, segundo os relatos de então.
O Zé e o seu amigo tinham bilhete para assistir à festa taurina, tendo sido adquiridos por uma minha amiga “espanhuela”, com dinheiro enviado pelo correio dentro de um simples envelope. Quando entramos na praça, já a mesma estava cheia e lá conseguimos arranjar dois lugarzitos em pé na última bancada, com a cabeça junto ao algeroz, todo partido, e às duas filas de telhas mouriscas que circundavam toda a praça.
Entre uns olés e uns olás, o tempo começou a ficar escuro, a ameaçar chuva, e quando Manuel dos Santos meteu a espada no cachaço (?) do animal e se preparava para receber os aplausos de mais aquele triunfo da sua vida taurina, um dilúvio caiu sobre Badajoz. Que tromba de água, meu Deus! No sítio onde estávamos, o povo comprimia-se e não se mexia, não dando qualquer oportunidade de nos podermos retirar. Ao algeroz que estava sobre a minha cabeça, faltava-lhe o tubo de continuidade e portanto toda a água que para ele era conduzida era despejada sobre a mim. Não havia maneira de nos safarmos, a água batia-me na cabeça, corria-me em golfadas enormes pelo pescoço, entrava sobre a roupa, descia o corpo e depois ia direitinha para o chão da bancada, após escorrer pelas minhas duas pernas abaixo e me encher os sapatos. Naquela altura, senti-me um algeroz humano.
Foi a primeira e única vez que vi uma tourada em Espanha e também foi a única vez que tomei um duche com água destilada.
Horas depois, falávamos e meditávamos como íamos desenrascar a situação de falta de dinheiro, mas creiam, queridos amigos, quando temos fé e sorte há sempre uma coisa a salvar um homem.
Por casualidade encontramos um amigo do meu pai, que também tinha ido ver a tourada. Pedi-lhe dinheiro emprestado e momentos depois estávamos com “cem palhaços” na mão e o percurso deixou de ser aquele directo, que estava destinado. Foi nessa altura e por isso que conheci Olivença e também, em vez de comer uma sopinha, saltámos aos campos, colhemos dois melões e nos “empaturrámos” com eles.
Saudades desses tempos? Claro que sim. Quem os não tem?
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