
Este boneco foi feito pela ceramista “Mistério” de Galegos de Santa Maria, aldeia do Concelho de Barcelos (representou Portugal na Expo de Sevilha), em homenagem ao Matias, elemento de “Os Lacinhos”, grande, grande amigo, que já faleceu. De notar que tem um caracol nos óculos.
Por tudo aquilo que já contei neste blogue, aliado aos contos que não pretendo divulgar,
chego à conclusão de que tive uma juventude fugaz.
É verdade, tive efectivamente uma juventude cheia de coisas boas, mas voltando a cabeça para trás, também chego à conclusão que tantas e tantas coisas que poderia ter feito, foram deixadas para trás sem possibilidades de as realizar.
A Juventude passou rapidamente e agora resta-me viver da saudade, da falta dos amigos inseparáveis e das memórias que felizmente dançam na massa encefálica da minha “mona”.
A minha aldeia, de ruas de terra solta, de casas cuja altura não ultrapassava o primeiro andar, vê-se hoje, com altos prédios, estação de comboio à porta, lojas iguais às das grandes capitais, e ela que nem sequer era Freguesia, faz parte de uma das Cidades (que deveriam ser mantidas aldeias) que os políticos na ânsia de grandeza elevaram àquela categoria.
Anualmente todas as povoações têm a sua festa em honra do seu padroeiro, mas a minha, a coitadinha, nem padroeiro tem. No entanto, no mês de Julho de cada ano realizava-se a Festa da Torre. E que festa meu Deus! As ruas eram engalanadas, não com aquelas ornamentações tanto em voga e que no Norte fazem furor. Festão, pinturas garridas, luzes a brilhar por toda a noite, os autofalantes a berrarem por tudo quando é sítio, nós não tínhamos. Tínhamos sim, e disso se orgulhavam os Torrenses, ornamentações feitas com louro a substituir o festão, vários carroceis, circos, poços da morte, muitas, muitas barracas de farturas, a casa rolante e um sem fim de atracções, que faziam dela a maior a mais importante festa de todas as redondezas. Destacando dois coretos, montados em lugares estratégicos da aldeia e onde passavam nos quatro dias que duravam as festas, as bandas filarmónicas mais importantes do País.
À volta dos coretos eram montadas esplanadas com mesas redondos feitas de ferro e cadeiras com tabuinhas pequenitas iguais às que se usavam nos circos. Nas horas em que as bandas tocavam e se alternavam, o silêncio era de oiro e os nossos ouvidos captavam os sons deliciosas das partituras. Mas… essas esplanadas eram a fonte da receita que a comissão das festas tanto necessitava para pagar os foguetes, o fogo-de artifício, às bandas de música etc. e portanto tratavam de fazerem concurso e a sua exploração seria feita por quem mais oferecesse.
“Os Lacinhos”, o meu grupo das partidas, das aventuras, sem qualquer experiência do negócio, resolveu concorrer, tendo ganho o concurso.
A partir dali, a coisa começa ficar feia. Sem jeito nem arte, para fazer bifanas, iscas, pregos, cachorros, preparar caracóis ou burriés, servir às mesas, resolvemos reunir, distribuir lugares e mãos à obra. Uns faziam isto, outros aquilo, e seja o que Cristo quiser, havendo no entanto o cuidado de colocar o Matias, (alcunhado de Marçal) míope e gago, na parte de dentro do balcão, feito com costaneiras das obras e que se encarregaria de tratar dos petiscos, alcançando o “material” aos que serviam às mesas. (Aconselho a lerem o conto Carnaval nas Belas Artes de 4/5/09, já que dá uma imagem perfeita do Marçal, figura principal desta história).
Pela noite, as bandas actuando, o povo rua abaixo, rua acima fazendo picadeiro, crianças ao colo chorando por uma fartura, enquanto outras lambendo o açúcar (à mistura com algum ranho), daquela massa frita feita em canudo, que ainda hoje vimos em qualquer sitio, as esplanadas cheias, a azafama de quem servia, o movimento no balcão para atender todos, colocavam o Marçal em “nervoso miudinho”.
Dois alguidares enormes de zinco (ainda não era a época do plástico), um cheio de caracóis vivos, outro vazio pronto para receber os cozidos e em cima do balcão, dezenas de rolhas de cortiça com alfinetes espetados para serem levados para as mesas onde fossem pedidos aqueles gastrópodes.
Um “panelão” enorme estava ao lume a cozer os primeiros caracóis da noite, os colegas, pediam, Marçal isto, Marçal aquilo, ainda um não tinha acabado e já outros abusando no tom de voz, solicitam outras coisas.
O Marçal não sabe para onde se virar, corre para a direita, para a esquerda, preocupa-se com o que está ao lume, destapa a panela e não consegue ver nada. O vapor que sai lá de dentro, embacia-lhe os óculos, às apalpadelas agarra em dois panos, pega nas asas da “panelão” e despeja os caracóis cozidos. Os elementos do grupo que estavam no balcão nessa ocasião, dão altas e sonoras gargalhadas, perturbam os músicos e o maestro manda parar a banda de tocar.
O Marçal como não via porque os óculos estavam embaciados, tinha acabado de vazar os caracóis cozidos no alguidar onde estavam os caracóis cruz. Dos vivos uns morrem imediatamente, outros safam-se como podem e nunca pensaram que corriam tanto, enquanto outros encolheram-se dentro da sua casca.
As coisas amainaram, a música retomou o concerto e a azáfama da esplanada voltou ao seu movimento normal. Pelo menos momentaneamente. O Marçal já não cozeu mais caracóis, mas em contrapartida, continuou a arranjar os pires para serem servidos. Estala por isso reclamações, gargalhadas e a banda daquele coreto, arrumou os instrumentos.
Os clientes, encontravam nos pires, caracóis vivos, cozidos, coxos e marrecos, vinham de todas as maneiras. Metiam-lhe o alfinete e o animal encolhia-se, outros fugiam garrafas de cerveja acima e enquanto o homem do trombone sacudia um caracol que lhe tinha trepado até às orelhas o maestro esteve em vias de ter um caracol refugiado na batuta.
Nos anos seguintes fomos proibidos de concorrer à exploração das esplanadas, pelos distúrbios ocasionados.