
A minha vida de "Tunante" continuava a bom ritmo, já conhecia mais de meia Lisboa. A Cidade onde o Sol brilha mais do que em todas as outras Cidades da Europa estava a meus pés. Pudera calcorreava as suas ruas a "butes", excepto quando me pendurava num eléctrico e o "fonseca" tentava dar-me com o alicate de furar os bilhetes na cabeça. Já sabia onde ficava o café Nacional e a sua cave com os seus bilhares, conhecia tudo que ficava para lá dos tapumes que circundavam o Parque Eduardo VII, muito especialmente onde jogava aos "pontapés nas canetas" com uma bola que escondíamos entre os arbustos, apanhava "capicúas" na rua do Ouro junto ao elevador de Santa Justa, frequentava o Bairro Alto em busca da tipografia onde era imprimido o jornal infantil "O Mosquito", conhecia o Jardim de S. Pedro de Alcântara, o Príncipe Real e até dera um salto à Feira da Ladra.
Era o Zé a preparar-se para aventuras futuras, que deram tantos Amores e Desamores, tantas preocupações à mãe Júlia, e tantos choros e alegrias, quando entendia que era hora de dar de "frosques" e desandar na procura de outras aventuras menos complicadas.
Os meus progenitores não obstante fazerem o seu comercio por atacado, tinham necessidade de escoar os seus produtos vinícolas. Aproximava-se a nova colheita e alguns toneis ainda abarrotavam daquele tinto, que cheirava a perfume de marmelo. Era hábito em vez de rolha, quando da cozedura, colocar-lhe no buraco fazendo de rolha um enorme marmelo "são como um pêro". E assim, com o consenso familiar, instalaram um "tasco" e café, dois estabelecimentos, separados por paredes, mas juntos por serem no mesmo edifício com interligação pelo seu interior, já que, facilitava a venda do "Branco" no lado do café, servido em chávena de chá, como se fora aquela infusão. Noutras palavras, em ambos os lados havia bebedeiras de criar bicho, mas do lado onde se servia o branco em chávena, sempre era outro asseio, pois na altura de limpar o sobrado, a empregada não sentia tanta repugnância por causa da cor, enjoava-se era por causa do cheiro.
No café havia bilhar livre e o Zé aproveitando a liberdade do progenitor não estar por perto, ia aprendendo a jogar, chegando mesmo a ganhar alguns campeonatos inter-clubes do seu Concelho.
Por isso , ele era tão conhecido no café Nacional, que ficava à esquina da Calçada do Duque/com a Primeiro de Dezembro na nossa Capital. Na cave, haviam entre 15 a 20 bilhares, estavam normalmente sempre cheios, mas nas horas da manhã e no intervalo entre aulas por falta de algum professor, era vê-lo numa correria louca, Calçada do Carmo abaixo, para jogar, muitas vezes em apostas que poucas vezes perdia. Era a Vida do Estudante/tunante, meio malandro.
Na parte da manhã, no dia que que General Carmona foi promovido a Marechal, houve tolerância de ponto aos professores. Do quartel do Carmo, partiu a fanfarra da GNR com os seus fatos engalanados de cordões brancos e com terminais dourados a caminho do Terreiro do Paço, local onde se desenrolava a cerimónia.
Como à saída da escola, uma das linhas da Carris tinha o seu início junto ao elevador de Santa Justas, foram os carros eléctricos os primeiros a receberem os acordes de uns murros bem dados nas suas "entranhas", tendo depois a malta acompanhado a marchar, e com gestos imitando os músicos, fazendo alarido, lá fomos atrás sob o olhar atento de meu pai, que resolveu também assistir ao acto, mas sem se denunciar ao Zé. Quando chegamos ao Terreiro do Paço, "adiós Papá".
Pequeno, furei pela multidão e fiquei sentado no chão na primeira fila a observar encantado todo
aquele aparato.Quando regressei ao Largo do Carmo e ia a entrar os portões da escola, caíram-me os "gajos aos pés". O meu pai esperava-me com ar grave. Assim, como os cães fazem, baixando a cabeça com o rabito entre as pernas aproximei-me. Não disse nada, porque ele abordou-me nestes termos. Foste às aulas de manhã? Se eu dissesse que sim, ele virava-e logo com um tabefe daqueles que nunca mais esquecemos. Respondi a medo que os professores tinham tido tolerância de ponto e tinhamos ido ver a festa do Marechal Carmona ao Terreiro do Paço. Eu sei, vi-te a dar murros nos eléctricos e atrás da fanfarra. Tens futuro a marchar. Fiquei assustado, ele tinha visto que afinal eu era um bom marchante e acompanhante de classe. Já almoças-te? Sabendo perfeitamente que não. Mas o Zé já estava aprendendo a técnica da defesa e disse que não, não tinha tido tempo. Ordenou-me que marchasse direito ali à leitaria da esquina, C. Sacramento/L. Carmo mandou vir uma garrafinha de leite Vigor, perguntado-me se queria quente ou frio. Frio, disse eu. O calor que tinha era tanto, que aquele leite queimou-me a garganta quando o bebi.
Fui para as aulas, correram mal, não me saía da cabeça a presença do meu pai esperando-me.Será que me bate? Agora é que eu vou saber o que é marchar. No regresso a casa, entrei pela porta da cozinha e vi a "santa Júlia", preparando o petisco. Beijei-a e silenciosamente pedi a sua ajuda. Olhou para mim, passou-me a sua mão pela minha cabeça num afago que só ela sabia fazer.
Na hora da comida, meu pai olhou-me com os seus olhos cândidos de velho amigo, muito compenetrado, perguntou-me. Então Zé, hoje tiveste festa lá perto de ti. A fanfarra saiu do Quartel do Carmo? Pois foi, respondi eu, estava nas aulas, não passei disso. Preparei-me para a erupção vulcânica. Em vez disse continuou... mas gostavas de ter visto? são coisas que só se vêm uma vez na vida, respondi eu. Safei-me, a mãe Júlia, tinha feito outra vez milagre.
Afinal, ainda vi mais duas vezes aquele cerimónia. Aquando do Spínola e de Costa Gomes.Meu irmão ficou boquiaberto.