
O David era um homem alto forte, usava uma bicicleta quase sem pintura, não tendo luz na dita, porque não estava para usar aquele aparato que trabalhava a carbureto e que pouco alumiava, e em vez de campainha ou buzina de bola de borracha, usava uma cavilha (prego grande) atado com um cordel, com que batia no guiador (este a parecer uns chifres de bovino), para alertar os transeuntes da sua presença. A sua profissão era Barbeiro e Castrador ou Castrador e Barbeiro, nunca soube bem qual era a profissão em que era mais especialista. Como Castrador, nunca lhe senti a faca, e daí não saber se era exímio nessa arte. Como Barbeiro, a navalha passou-me muitas vezes pelos queixos e com resultados mais ou menos positivos. Também não tomei nota se houve mais positivos ou negativos, pelo que admito um empate.
Quantas vezes o David saía bem cedo de sua casa montado na sua velha pedaleira para acorrer a uma chamada urgente, no sentido de capar um porco, e depois quando regressava ainda com a roupa suja daquele trabalho já estavam um ou dois clientes à sua porta porque pretendiam cortar o cabelo.
Era casado com a Beatriz, "enfermeira relativa", já que não tirou nenhum curso, mas dava uma injecções a quem necessitava, tendo aprendido nuns desgraçados cães vadios, visitas do seu quintal e que iam fazer a "corte" à sua cadela de raça "Castro Laboreiro" que acompanhava o David quando nas horas de lazer ia à procura de algum coelhito.
Raramente vestia bata branca no exercício de "figaro", mas era artista rápido e destro com a navalha, que o digam os clientes que saiam porta fora a deitar sangue por alguma borbulha que não resistia ao fio da navalha mal afiada.
As suas mãos «manápulas grandes» habituadas a apalpar os testículos aos suínos eram de pele grossa causticadas pelo sol do verão e o frio do inverno, e quantas vezes o David na ânsia de satisfazer algum cliente mais apressado afiava a navalha na palma da mão, fazendo um corte para experimentar se estava em condições, naquela pela dura resistente na parte lateral da sua mão direita, já que era canhoto.
O "After Shawe" não passava de uma pedra que parecia gelo passada pela cara que fazia arder e a cicatrização de um descuido, era remediada com uma mortalho de fazer cigarros de tabaco "onça" avulso, e às vezes não chegava uma. Quando as coisas corriam mal, a cara do cliente ficava pálida e levava de chapa uma mortalha que o sangue colava à cara, quando não era duas ou três.
Mas mesmo assim, não lhe faltavam clientes, já que, ele tinha olho e fazia um desconto a quem fosse cliente nos seus dois negócios.
Um dia, na paragem da camioneta de passageiros que vinha de Cacilhas com destino à sede do Distrito, saiu um sujeito aperaltado, bigode farfalhudo, sapatos bem engraxados (ficou tramado
as ruas lá da terra era de areia solta), dirigiu-se a uma pequena mercearia e perguntou onde havia uma barbearia. O merceeiro, não conhecia aquela cara e curioso, tentando explicar, atrapalhou-se na sua maneira de dar explicação, mas remata desta maneira, olhando e apontando para o chão.
Meu caro Senhor, é muito fácil lá chegar, siga sempre este rasto de sangue e vai lá ter. Os olhos do homem saltaram de terror, nas como não viu sangue nenhum foi embora sem dizer obrigado.
O certo é que o homem conseguiu achar a barbearia do David,esperou pacientemente pela sua vez e chegou o momento de colocar o David à prova de fogo, pensando que se calhar seria melhor ter feito um seguro de vida.Como era cliente novo e desconhecido, pelo sim pelo não, David pediu com um grito para a Beatriz lhe trazer a navalha nova. (o que fazia pela primeira vez, sem carta de recomendação).
O cliente foi-lhe dizendo que tinha ido ali para fazer a barba, dado que no outro dia sábado, ia ao casamento de uma moçoila lá da terra. Queria portanto um trabalho escanhoado com perfeição...
O David dá-lhe a primeira e segunda passagem, e a cara do cliente tinha salpicos de sangue que o David atabalhoadamente tenta estancar. O "Mestre" grita novamente à mulher que estava lá nos confins da cozinha e pede um copo de água. A mulher chega lesto, o David pega no copo e coloca-o na mão do cliente, que recusa e diz que não tem sede. O David responde-lhe; que não é para beber é somente para bochechar e verificar se a cara está rota.
Mas o Barbeiro estava imparável, dá espuma outra vez na cara do cliente, ele barafusta e diz que está bem assim. Que não, que não, ele tinha dito que ia amanhã ao casamento da nubente lá da terra e portanto ia escanhoado a preceito. Vê, vê, há sempre uns cabelitos que nos escapam e aqui o seu pescoço está cheio deles. E vai puxando as peles, e puxa e corta e torna a puxar e o cliente está num pavor.
Até que o David, diz assim. Meu caro senhor, tenho feito um trabalho notável, mas o Senhor tem aqui no pescoço um sinal preto enorme. O homem salta da cadeira, olha para o espelho e vê efectivamente aquele sinal enorme escuro e cheio de pregas.
Oh. Meu Deus, você já me puxou tanto, tanto as peles, que já tenho o buraco da saída do corpo aqui no pescoço.
Atirou com a toalha para cima da cadeira, pagou, saiu, ninguém ficou a saber se no outro dia tinha ido ao casamento, mas nunca mais voltou aquela terra.