24.3.12

Os Nossos Melhores Amigos


A minha vida de "Tunante" continuava a bom ritmo, já conhecia mais de meia Lisboa. A Cidade onde o Sol brilha mais do que em todas as outras Cidades da Europa estava a meus pés. Pudera calcorreava as suas ruas a "butes", excepto quando me pendurava num eléctrico e o "fonseca" tentava dar-me com o alicate de furar os bilhetes na cabeça. Já sabia onde ficava o café Nacional e a sua cave com os seus bilhares, conhecia tudo que ficava para lá dos tapumes que circundavam o Parque Eduardo VII, muito especialmente onde jogava aos "pontapés nas canetas" com uma bola que escondíamos entre os arbustos, apanhava "capicúas" na rua do Ouro junto ao elevador de Santa Justa, frequentava o Bairro Alto em busca da tipografia onde era imprimido o jornal infantil "O Mosquito", conhecia o Jardim de S. Pedro de Alcântara, o Príncipe Real e até dera um salto à Feira da Ladra.
Era o Zé a preparar-se para aventuras futuras, que deram tantos Amores e Desamores, tantas preocupações à mãe Júlia, e tantos choros e alegrias, quando entendia que era hora de dar de "frosques" e desandar na procura de outras aventuras menos complicadas.
Os meus progenitores não obstante fazerem o seu comercio por atacado, tinham necessidade de escoar os seus produtos vinícolas. Aproximava-se a nova colheita e alguns toneis ainda abarrotavam daquele tinto, que cheirava a perfume de marmelo. Era hábito em vez de rolha, quando da cozedura, colocar-lhe no buraco fazendo de rolha um enorme marmelo "são como um pêro". E assim, com o consenso familiar, instalaram um "tasco" e café, dois estabelecimentos, separados por paredes, mas juntos por serem no mesmo edifício com interligação pelo seu interior, já que, facilitava a venda do "Branco" no lado do café, servido em chávena de chá, como se fora aquela infusão. Noutras palavras, em ambos os lados havia bebedeiras de criar bicho, mas do lado onde se servia o branco em chávena, sempre era outro asseio, pois na altura de limpar o sobrado, a empregada não sentia tanta repugnância por causa da cor, enjoava-se era por causa do cheiro.
No café havia bilhar livre e o Zé aproveitando a liberdade do progenitor não estar por perto, ia aprendendo a jogar, chegando mesmo a ganhar alguns campeonatos inter-clubes do seu Concelho.
Por isso , ele era tão conhecido no café Nacional, que ficava à esquina da Calçada do Duque/com a Primeiro de Dezembro na nossa Capital. Na cave, haviam entre 15 a 20 bilhares, estavam normalmente sempre cheios, mas nas horas da manhã e no intervalo entre aulas por falta de algum professor, era vê-lo numa correria louca, Calçada do Carmo abaixo, para jogar, muitas vezes em apostas que poucas vezes perdia. Era a Vida do Estudante/tunante, meio malandro.
Na parte da manhã, no dia que que General Carmona foi promovido a Marechal, houve tolerância de ponto aos professores. Do quartel do Carmo, partiu a fanfarra da GNR com os seus fatos engalanados de cordões brancos e com terminais dourados a caminho do Terreiro do Paço, local onde se desenrolava a cerimónia.
Como à saída da escola, uma das linhas da Carris tinha o seu início junto ao elevador de Santa Justas, foram os carros eléctricos os primeiros a receberem os acordes de uns murros bem dados nas suas "entranhas", tendo depois a malta acompanhado a marchar, e com gestos imitando os músicos, fazendo alarido, lá fomos atrás sob o olhar atento de meu pai, que resolveu também assistir ao acto, mas sem se denunciar ao Zé. Quando chegamos ao Terreiro do Paço, "adiós Papá".
Pequeno, furei pela multidão e fiquei sentado no chão na primeira fila a observar encantado todo
aquele aparato.
Quando regressei ao Largo do Carmo e ia a entrar os portões da escola, caíram-me os "gajos aos pés". O meu pai esperava-me com ar grave. Assim, como os cães fazem, baixando a cabeça com o rabito entre as pernas aproximei-me. Não disse nada, porque ele abordou-me nestes termos. Foste às aulas de manhã? Se eu dissesse que sim, ele virava-e logo com um tabefe daqueles que nunca mais esquecemos. Respondi a medo que os professores tinham tido tolerância de ponto e tinhamos ido ver a festa do Marechal Carmona ao Terreiro do Paço. Eu sei, vi-te a dar murros nos eléctricos e atrás da fanfarra. Tens futuro a marchar. Fiquei assustado, ele tinha visto que afinal eu era um bom marchante e acompanhante de classe. Já almoças-te? Sabendo perfeitamente que não. Mas o Zé já estava aprendendo a técnica da defesa e disse que não, não tinha tido tempo. Ordenou-me que marchasse direito ali à leitaria da esquina, C. Sacramento/L. Carmo mandou vir uma garrafinha de leite Vigor, perguntado-me se queria quente ou frio. Frio, disse eu. O calor que tinha era tanto, que aquele leite queimou-me a garganta quando o bebi.
Fui para as aulas, correram mal, não me saía da cabeça a presença do meu pai esperando-me.
Será que me bate? Agora é que eu vou saber o que é marchar. No regresso a casa, entrei pela porta da cozinha e vi a "santa Júlia", preparando o petisco. Beijei-a e silenciosamente pedi a sua ajuda. Olhou para mim, passou-me a sua mão pela minha cabeça num afago que só ela sabia fazer.
Na hora da comida, meu pai olhou-me com os seus olhos cândidos de velho amigo, muito compenetrado, perguntou-me. Então Zé, hoje tiveste festa lá perto de ti. A fanfarra saiu do Quartel do Carmo? Pois foi, respondi eu, estava nas aulas, não passei disso. Preparei-me para a erupção vulcânica. Em vez disse continuou... mas gostavas de ter visto? são coisas que só se vêm uma vez na vida, respondi eu. Safei-me, a mãe Júlia, tinha feito outra vez milagre.
Afinal, ainda vi mais duas vezes aquele cerimónia. Aquando do Spínola e de Costa Gomes.
Meu irmão ficou boquiaberto.

30 comentários:

Maria disse...

Amigo Zé:
Como eu gosto destas histórias antigas! Como gostei de ver teus pais! Ás vezes, Dona Saudade toma conta de nós.
Quem diria, que o bem disposto e brincalhão, Zé do canito, tem uma sensibilidade tão grande!
A Dona Júlia devia ser uma santa. O teu pai, se calhar, fazia-se mais duro do que era.
Amanhã, dia 25, irás ver no meu blogue, a falta que a minha Santa Mãe, me faz. São 40 anos sem ela.
O vazio que nos provoca a falta deles, amigo.
Cada vez sou mais tua amiga.
Beijinho para ti e a tua Dona.
Maria

São disse...

Gostei de ver teus pais!!

Gostei de saber que partilhámos essa situação aterradora de um progenitor ( mãe, no meu caso)aparecer inseperadamente num sítio onde não deveria estar jamias, rrss

Te desejo felzi fim de seman, meu querido Zé

Dona Sra. Urtigão disse...

Leio sempre que posso suas historias maravilhosas.
Gosto muito.

Elvira Carvalho disse...

Correndo o risco de me tornar repetitiva, tenho que dizer que mais uma vez me encantou esta memória do passado. A sua mãe era muito bonita. O seu pai parece-se consigo, não, o contrário é que está certo.
No Sexta está a foto de casamento dos meus, pois como deve já saber o Manuel da Lenha era o meu pai.
Um abraço e um bom Domingo.

Zé do Cão disse...

Deve ser as saudades que tenho deles.
Estou a ser piegas?

A minha mãe foi toda a vida uma mulher sofredora, tinha mais 18 irmãos. Muitos deles partir com a peste. Meu pai a família também era numerosa, tinha 17 irmãos.
Era o tempo em que não havia maquinas para trabalhar os campos...

Beijos, minha amiga

Zé do Cão disse...

São
O meu pai de quando em quando queria saber se havia alguns desvios.
No fundo, era a defesa dos seus pequenos.
Foram bons pais, à maneira tradicional da família portuguesa.
A mulher para cuidar dos filhos (que eram só dois). Agora vê as minhas avós, coitadas era maquinas de parir.
Os campos tinham de ser trabalhados.
beijo

Zé do Cão disse...

Dona Srª Urtigão

Fico feliz por isso, alguma coisa consigo transmitir.

O meu abraço

Zé do Cão disse...

Elvira

Com 7 anos a minha mãe vendia queijinhos frescos em porta a porta.
Seu pai (meu avó) era dono de um rebanho considerável Com aquela idade fazia diariamente a pé
por azinhagas sozinha, ida e volta, qualquer coisa segundo os meus calculas como 18 km.
Não sabia ler nem escrever, mas sabia com extrema subtileza esconder essa falta.
Não era mãe galinha, mas uma fera defendendo o Zé, com senso e ponderação. Preferia uma boa conversa a um sopapo . Aturou-me...
Sobre o Manuel, tinha adivinhado... É uma historia encantadora

o meu abraço

Maria disse...

Zé amigo:
Piegas, porquê? Estás a mostrar que amaste os teus pais e eles te amaram.
Isso não é pieguice, é AMOR.
Beijinho
Maria

Zé do Cão disse...

Maria

obrigado.
Estou sensibilizado


Beijo

Lúcia Bezerra de Paiva disse...

Aqui também, se relembra as maravilhas do passado, tão amado. Saudade é dos mais nobres sentimentos, tanto lá quanto cá.

tenho lido as suas narrativas, Zé, e como se assemelham às nossas, do lado de cá, pela herança que recebemos do querido Portugal.

"Matei" meu desejo de conhecer Lisboa, em 1979. Depois, fui mais duas vezes. Com certeza, irei em breve.

Um abraço,
da Lúcia

Zé do Cão disse...

Lucia

Tenho sempre a porta aberta para quem aparecer por bem.
E porque não ver-mo-nos por cá?

o meu abraço

Je Vois La Vie en Vert disse...

Caro amigo,

Leio as tuas histórias sempre com muito interesse. São tão bem contadas que parecem um filme.
A tua mãe era muito bonita e será que me atrevo a dizer que és parecido com ela sem parecer enviar-te "piropos" ?
Eu não consigo ver parecença com o teu pai, o teu pai revela nessa foto um ar de pessoa de confiança e calma e o que contas o confirma.
Comentando aquilo que escreveste no meu blog, acredito que tenhas medo de "perder" tudo o que já viveste aqui na terra porque a tua vida foi muito rica. Eu não digo que eu não tenha medo de envelhecer nem de morrer, medo do desconhecido mas a minha Fé me ajuda a enfrentar o futuro. Tenho principalmente muito medo de sofrer na minha velhice porque como já sofro agora, assusta-me um pouco juntar as 2 coisas...
Parabéns por mais uma publicação de primeira !
Muitos beijinhos amigos e verdinhos...

Verdinha

Zé do Cão disse...

Verdinha

Fiquei consolado (por agora)


Beijinhos, minha amiga

Pascoalita disse...

Meu querido AMIGO!

Fico sempre emocionada com a forma carinhosa como falas dos teus pais. E descreve-los tão bem, que a "mãe Júlia" já me parece familiar :)*

Caramba! Aquilo é que eram aventuras, hen? E é fantástico como recordas todos os pormenores como se tivessem ocorrido ontem!

Caramba! Começaste cedo a "correr Lisboa de lés a lés" só não sei se nessa altura já usavas "meias Ferrador nos pés" ahahahah

Os "putos pendurados nos eléctricos" são um cenário de que ainda me lembro, mas de bilhares, matraquilhos, trombetas e fanfarras na praça do Comércio e afins, não sei nadica ... por essa altura divertia-me trepando a árvores ou saltando à corda sem fazer a menor ideia que havia tanta coisa mais divertida eheheh

A mãe Júlia tem um ar calmo doce, o Pai António(?) um senhor sereno ... ambos muito bonitos e decerto eram muito orgulhosos dos seus rebentos


Jinhos

Zé do Cão disse...

Pascoalita

O Pai, era senhor do seu nariz, mas homem muito respeitado e empreendedor.
A mãe Júlia tinha tudo de Santa. Nunca bateu "tautau" nos fundilhos do Zé e nem por isso alguma vez abusei. Para ela não havia guerras e a Paz estava sempre no seu semblante.
A Casa Ferrador era na Pascoal de Melo, não era? Frente à Portugália?

Biquinhos, amiga

Pascoalita disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Pascoalita disse...

Engraçado, achei logo logo que és parecido com a mãe Julia, mas não disse antes por 2 motivos:

1 - Não quis que corresses a usar babete eheheh

1 - Receei que achasses que era "bajulação gratuita"

Mas o comentário da verdinha encorajou-me! De facto concordo com que és muito parecido com a tua querida "mommy"

Sim, há uma "Loja Ferrador" na Pascoal de Melo, onde muitas vezes fiz compras por ficar perto do trabalho, mas há várias lojas do grupo em Lisboa.

O "anuncio das meias", é um slogan que passava na rádio e que me fazia lembrar um anúncio muito antigo, de quando apareceu a moda das meias de vidro ... os vendedores ambulantes andavam de aldeia em aldeia, de "alto-falantes" a apregoar as ditas cujas, usando um "pregão brejeiro" que nunca mais esqueci eheheh

Zé do Cão disse...

Pascoalita

Era o tempo das camisas TV, que não tinham "pregas no peito nem rugas no colarinho".
Os caixões da Agência barata, só tinham pregas nos fôlhos e nos entrefôlhos.
Uma vez escrevi uma peça de teatro para ser representada no Carnaval e no final havia um pobre que morria por ter ficado "empaturrado" por comer demais.
Tenciono fazer um texto.
Biquinhos

Magia da Inês disse...

Destes sorte porque seu pai também apreciou a cerimônia.
Seus pais eram Bonitões. Sua mãe tinha um rosto doce e seu pai severo.
Bom domingo!
Beijinhos.
Brasil
¸.•°`♥✿⊱╮
°º♫

Zé do Cão disse...

Magia
Este era o tempo em que não havia drogas, andava-mos à vontade por tudo quanto era sitio e a qualquer hora da noite.
Tempo de oiro que jamais voltarão.

Beijo

Mariazita disse...

Zé, querido amigo
Talvez eu esteja a atravessar uma fase particularmente sensível... o que me fez adorar esta tua aventura, principalmente no que se refere à reacção, tanto do teu Pai como da tua Mãe.
Saudades??? Quem as não tem dos entes queridos que partiram?

Agradeço o "bote" que me levaste carregado de amizade. Estava a abarrotar, mas consegui guardá-la toda num grande abraço... :)

Se não nos virmos antes da Páscoa desejo que a passes com muita alegria, Paz e Amor.

Beijinhos muito amigos

PS – Por motivos alheios à minha vontade não tive possibilidade de vir ao pc durante mais de uma semana, e por isso só hoje estou retribuindo e agradecendo a sua visita.
Conto com a sua compreensão. Obrigada!

Mariazita disse...

PS - Esqueci-me de referir as fotos dos teus Pais, de que gostei imenso...
+ 1 beijito

Fernanda Ferreira - Ná disse...

Sem dúvida!
felizes somos quando ainda temos pais, outro ninho e um amor sem paralelo.

Trago um trago doce de amendoas em flor e votos de Páscoa muito Feliz.

Beijo

Kim disse...

Oh Zé! Quando falamos dos nossos pais até temos saudades dos bofetões que levámos.
É muito bonito ter estas recordações que nos acompanharão até ao fim.
Sabes bem quanto gosto das tuas estórias, às vezes - tão parecidas com as minhas.
Um grande abraço

Parisiense disse...

Safaste-te de uma boa, safaste...
Mas se não fossem essas histórias que tens para nos contar, significava que a vida te tinha passado ao lado, assim como todos os que dela fazem parte e neste caso dos teus pais.
Ora diz lá que se fosse possivel não os guardarias para sempre á teu lado?
Quando se amou e foi amado jamais se esquece.

Beijokitas "malandreco".

Zé do Cão disse...

Mariazita
Também uma feliz Pascoa. O melhor possível.

Pai é Pai, mas mãe é mãe e a minha perdoou-me tantas...

Beijo

Zé do Cão disse...

Fernanda

Agradeço reconhecido as amáveis palavras.

Beijo

Zé do Cão disse...

Kim
Qualquer dia, temos de despejar as aventuras e desventuras que cada um passou.
Ai... se eu dissesse todas, que
"Verguenza".


Abraço com boa Pascoa

Zé do Cão disse...

Parisiense

Que bom receber uma notazinha de tão simpática "Arouquense".


Beijokitas