15.12.09

Ranho ou massa

Como estamos na época da caça e esta historia se passou nesta altura do ano, resolvi vir agora a terreiro, contando-a.
O Costa (não o Costa do Castelo, esse é outro e representado por António Silva, o melhor cómico português de todos os tempos), tinha um irmão, também Costa como ele, mas a quem todos chamavam “vivo”. Um caçava de espingarda, o outro era caçador de pau, sendo ambos uns falhados naquele desporto(?), já que a um faltava a pontaria para acertar nos animais em movimento, enquanto ao “vivo” a destreza para manejar o pau. Todavia eram pertinazes e mantinham a chama acesa e a gana de ir ao campo, calcorrear quilómetros e quilómetros para ver se apanhavam qualquer coisa.
De cada vez que partiam à procura do lazer, apanhavam, isso sim, uma caminhada imensa, que os deixava derreados por três dias. Ouvi-os lamentar-se muito vez, que não apanhavam caça, porque era escassa e não tinham cães à altura para dar a preciosa colaboração de que tanto necessitavam. Mas como os outros companheiros apanhavam sempre, afirmavam que os seus cães praticamente é que lhes metiam os coelhos e as lebres em frente da caçadeira.
Isto era assim quase todos os anos e portanto já toda a gente no lugar se ria dos desaires dos esforçados daquela arte.
Um deles era casado e o outro “amancebado”, que no fundo não interessa mesmo nada para a história.
A Rosa, mulher do casado, às vezes não batia bem a bola e deixava-a cair, em vez de encestar, usando uns óculos com uma lentes fortíssimas, fruto de uma miopia em estado muito adiantada e ao falar batia com a língua nos dentes superiores da frente. Não trabalhava, andando no laréu de porta em porta a coscuvilhar com a vizinhança, sabendo por isso a vida de todos no lugar.
Certa quinta-feira, o Costa e o seu mano arrumaram-se na camioneta de caixa aberta que os transportaria ao Alentejo, na companhia de mais dez ou quinze companheiros das caçadas. Como sempre, toda a gente menos os Costas apanhou perdizes, coelhos, lebres, e na hora do regresso a casa houve distribuição, cabendo a cada um dos irmãos 2 coelhos e 1 perdiz.
A tristeza por não apanharem nada foi ultrapassada pela felicidade de levarem pendurados a tiracolo aquelas peças oferecidas, pois faziam vista como se fossem eles que as tivessem apanhado. Chegaram cedo, largaram-nas em casa e correram à taberna para, entre uns copos, uns murros na mesa e umas cuspidelas no baralho das cartas, poderem contar as suas façanhas no dia em que, bafejados pela sorte, teriam os dois apanhado aqueles seis infelizes animais (cada caçador, cada mentiroso).
A Rosa entrou em casa com um cartucho de papel pardo na mão, não sei bem se recheado de algum café comprado avulso, se alguma coisa pedinchada a alguma vizinha, vê os coelhos e a perdiz e correu apressada à tasca, para perguntar ao marido como seria o jantar daquele dia.
E talvez com a falta de vista e a precipitação de ir a correr, dá com a cara e consequentemente com o nariz na ombreira da porta, que não só lhe causou dor, como desencadeou a vontade de espirrar, expelindo muco pelo nariz.
Aprumou-se, com o lenço vai limpando o muco, enquanto os companheiros da jogatana, sorriam ao ver aquela cena grotesca. E pergunta ao marido.
Costa, os coelhos para esta noite é para fazer com ranho ou com massa?, respondendo o Costa precipitadamente que fizesse os coelhos com massa e a perdiz com ranho, mas para amanhã.
Rebenta gargalhada geral. No entanto, o que a Rosa pretendia perguntar era se os fazia com arroz.
Talvez aquele muco transformado em condimento fosse capaz de dar um paladar exótico à comida e num futuro viesse a fazer parte de algum livro de Pantagruel.
.

2.12.09

Passagem de nível

Todos nós já vimos fotografias, em jornais e na TV, de automóveis esmagados por comboios.
Não há quem não fique impressionado, pois na maioria dos casos resulta também no descarrilar da máquina e na perda de vidas humanas.
O Zé, durante os largos anos que viveu no Minho, deslocava-se todos os fins de semana para a Galiza, mais propriamente para as proximidades de “A Toxa”, onde possuía “cortiço”. Ainda não havia o “euro” e portanto tinha que ter o bolso apetrechado de pesetas para fazer face às suas despesas.
A última passagem de nível em Portugal da linha que vem do Porto para Vigo, é precisamente junto à fronteira de Valença, seguindo-se imediatamente a ponte, onde nesta o comboio passa por cima e a locomoção automóvel por debaixo.
Quantas vezes as bichas para passar a fronteira era enormes, pois era necessário mostrar passaporte, documentos da viatura, inspecção às mesmas por elementos da Alfândega, chegando a demorar horas naquelas esperas.
Os naturais daquelas bandas ultrapassavam todos os que pacientemente esperavam e, fingindo dirigir-se para os campos próximos ou sendo residentes das casas que estavam daquele lado, retomavam a estrada mais à frente através dessa passagem de nível.
Com os tempos, os abusos foram sendo cada vez maiores, até que…
Retiraram as travessas, que dava a possibilidade de fazer aquela passagem, sendo por isso impossível por ali a travessia. Todavia não retiraram as que estavam entre linhas, pelo que os peões continuaram a passar por ali. Em cada um dos lados colocaram uns postaletes, para impedir a circulação automóvel.
Eu, não o usando, conhecia muitíssimo bem o local, já que comprava as pesetas na candonga, a uma senhora já de idade, por preço mais barato do que nos bancos, precisamente ali, a quinze, vinte metros daquela passagem.
Portanto, semanalmente era o meu banco de apoio.
Certa noite, enquanto esperava a entrega das pesetas ia conversando com aquela senhora e reparamos que um carro pequeno, “morris”, se dirigia para a passagem de nível. A senhora comentou assim: Para onde vai aquele carro?
Pelos vistos, o homem, ou conhecia mal o local, ou conhecendo-o julgou ser possível a travessia. Passou entre os postaletes, subiu a linha e como a tracção da viatura era à frente, circulou para a atravessar. Quando as rodas da frente passam a segunda linha, o automóvel assenta o chassi nas travessas de madeira, ficando as rodas dianteiras e traseiras, em suspensão. O homem sai, para ver o problema em que estava metido e a senhora faz-lhe esta conversa: Oh! Homem, você não via que não podia passar por aqui? Não tarda vai passar o comboio que se destina a Vigo. Mas que desgraça!
A única resposta que ouvimos foi esta: preciso de ajuda.
Retirei o meu carro do local e fui tentar ajudá-lo, tendo entretanto aparecido mais dois indivíduos que, como eu, eram franganotes, dos pesos leve. Dois de um lado, dois do outro, tentávamos levantar e ao mesmo tempo arrastar, de maneira que as rodas de trás vencessem a altura da linha. Impossível. Os quatro não tínhamos força resolver o problema.
Descansávamos e ouvimos o silvar do comboio que se aproximava. Imediatamente afastei-me, de forma a não ser atingido com os destroços que se seguiriam ao embate que era inevitável.
O dono do carro, homem talvez a rondar os vinte e cinco, vinte e sete anos, sem qualquer ajuda, foi buscar aos nervos, aos músculos, à sua fé, força suficiente para pegando no carro pela frente, dá um grito, ou melhor um urro, levanta-o e move o carro, que descaiu para trás, ficando as rodas da frente em cima novamente das traves e as de trás, assentes no chão.
Salta para o volante, faz marcha atrás, e quando a porta do seu lado está frente aos postaletes já referidos, passa o comboio a apitar a avisar que ia iniciar a travessia da ponte.
Um só homem conseguiu fazer o que quatro não tinham conseguido! E ainda há quem não acredite em milagres…
.