15.12.09

Ranho ou massa

Como estamos na época da caça e esta historia se passou nesta altura do ano, resolvi vir agora a terreiro, contando-a.
O Costa (não o Costa do Castelo, esse é outro e representado por António Silva, o melhor cómico português de todos os tempos), tinha um irmão, também Costa como ele, mas a quem todos chamavam “vivo”. Um caçava de espingarda, o outro era caçador de pau, sendo ambos uns falhados naquele desporto(?), já que a um faltava a pontaria para acertar nos animais em movimento, enquanto ao “vivo” a destreza para manejar o pau. Todavia eram pertinazes e mantinham a chama acesa e a gana de ir ao campo, calcorrear quilómetros e quilómetros para ver se apanhavam qualquer coisa.
De cada vez que partiam à procura do lazer, apanhavam, isso sim, uma caminhada imensa, que os deixava derreados por três dias. Ouvi-os lamentar-se muito vez, que não apanhavam caça, porque era escassa e não tinham cães à altura para dar a preciosa colaboração de que tanto necessitavam. Mas como os outros companheiros apanhavam sempre, afirmavam que os seus cães praticamente é que lhes metiam os coelhos e as lebres em frente da caçadeira.
Isto era assim quase todos os anos e portanto já toda a gente no lugar se ria dos desaires dos esforçados daquela arte.
Um deles era casado e o outro “amancebado”, que no fundo não interessa mesmo nada para a história.
A Rosa, mulher do casado, às vezes não batia bem a bola e deixava-a cair, em vez de encestar, usando uns óculos com uma lentes fortíssimas, fruto de uma miopia em estado muito adiantada e ao falar batia com a língua nos dentes superiores da frente. Não trabalhava, andando no laréu de porta em porta a coscuvilhar com a vizinhança, sabendo por isso a vida de todos no lugar.
Certa quinta-feira, o Costa e o seu mano arrumaram-se na camioneta de caixa aberta que os transportaria ao Alentejo, na companhia de mais dez ou quinze companheiros das caçadas. Como sempre, toda a gente menos os Costas apanhou perdizes, coelhos, lebres, e na hora do regresso a casa houve distribuição, cabendo a cada um dos irmãos 2 coelhos e 1 perdiz.
A tristeza por não apanharem nada foi ultrapassada pela felicidade de levarem pendurados a tiracolo aquelas peças oferecidas, pois faziam vista como se fossem eles que as tivessem apanhado. Chegaram cedo, largaram-nas em casa e correram à taberna para, entre uns copos, uns murros na mesa e umas cuspidelas no baralho das cartas, poderem contar as suas façanhas no dia em que, bafejados pela sorte, teriam os dois apanhado aqueles seis infelizes animais (cada caçador, cada mentiroso).
A Rosa entrou em casa com um cartucho de papel pardo na mão, não sei bem se recheado de algum café comprado avulso, se alguma coisa pedinchada a alguma vizinha, vê os coelhos e a perdiz e correu apressada à tasca, para perguntar ao marido como seria o jantar daquele dia.
E talvez com a falta de vista e a precipitação de ir a correr, dá com a cara e consequentemente com o nariz na ombreira da porta, que não só lhe causou dor, como desencadeou a vontade de espirrar, expelindo muco pelo nariz.
Aprumou-se, com o lenço vai limpando o muco, enquanto os companheiros da jogatana, sorriam ao ver aquela cena grotesca. E pergunta ao marido.
Costa, os coelhos para esta noite é para fazer com ranho ou com massa?, respondendo o Costa precipitadamente que fizesse os coelhos com massa e a perdiz com ranho, mas para amanhã.
Rebenta gargalhada geral. No entanto, o que a Rosa pretendia perguntar era se os fazia com arroz.
Talvez aquele muco transformado em condimento fosse capaz de dar um paladar exótico à comida e num futuro viesse a fazer parte de algum livro de Pantagruel.
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2.12.09

Passagem de nível

Todos nós já vimos fotografias, em jornais e na TV, de automóveis esmagados por comboios.
Não há quem não fique impressionado, pois na maioria dos casos resulta também no descarrilar da máquina e na perda de vidas humanas.
O Zé, durante os largos anos que viveu no Minho, deslocava-se todos os fins de semana para a Galiza, mais propriamente para as proximidades de “A Toxa”, onde possuía “cortiço”. Ainda não havia o “euro” e portanto tinha que ter o bolso apetrechado de pesetas para fazer face às suas despesas.
A última passagem de nível em Portugal da linha que vem do Porto para Vigo, é precisamente junto à fronteira de Valença, seguindo-se imediatamente a ponte, onde nesta o comboio passa por cima e a locomoção automóvel por debaixo.
Quantas vezes as bichas para passar a fronteira era enormes, pois era necessário mostrar passaporte, documentos da viatura, inspecção às mesmas por elementos da Alfândega, chegando a demorar horas naquelas esperas.
Os naturais daquelas bandas ultrapassavam todos os que pacientemente esperavam e, fingindo dirigir-se para os campos próximos ou sendo residentes das casas que estavam daquele lado, retomavam a estrada mais à frente através dessa passagem de nível.
Com os tempos, os abusos foram sendo cada vez maiores, até que…
Retiraram as travessas, que dava a possibilidade de fazer aquela passagem, sendo por isso impossível por ali a travessia. Todavia não retiraram as que estavam entre linhas, pelo que os peões continuaram a passar por ali. Em cada um dos lados colocaram uns postaletes, para impedir a circulação automóvel.
Eu, não o usando, conhecia muitíssimo bem o local, já que comprava as pesetas na candonga, a uma senhora já de idade, por preço mais barato do que nos bancos, precisamente ali, a quinze, vinte metros daquela passagem.
Portanto, semanalmente era o meu banco de apoio.
Certa noite, enquanto esperava a entrega das pesetas ia conversando com aquela senhora e reparamos que um carro pequeno, “morris”, se dirigia para a passagem de nível. A senhora comentou assim: Para onde vai aquele carro?
Pelos vistos, o homem, ou conhecia mal o local, ou conhecendo-o julgou ser possível a travessia. Passou entre os postaletes, subiu a linha e como a tracção da viatura era à frente, circulou para a atravessar. Quando as rodas da frente passam a segunda linha, o automóvel assenta o chassi nas travessas de madeira, ficando as rodas dianteiras e traseiras, em suspensão. O homem sai, para ver o problema em que estava metido e a senhora faz-lhe esta conversa: Oh! Homem, você não via que não podia passar por aqui? Não tarda vai passar o comboio que se destina a Vigo. Mas que desgraça!
A única resposta que ouvimos foi esta: preciso de ajuda.
Retirei o meu carro do local e fui tentar ajudá-lo, tendo entretanto aparecido mais dois indivíduos que, como eu, eram franganotes, dos pesos leve. Dois de um lado, dois do outro, tentávamos levantar e ao mesmo tempo arrastar, de maneira que as rodas de trás vencessem a altura da linha. Impossível. Os quatro não tínhamos força resolver o problema.
Descansávamos e ouvimos o silvar do comboio que se aproximava. Imediatamente afastei-me, de forma a não ser atingido com os destroços que se seguiriam ao embate que era inevitável.
O dono do carro, homem talvez a rondar os vinte e cinco, vinte e sete anos, sem qualquer ajuda, foi buscar aos nervos, aos músculos, à sua fé, força suficiente para pegando no carro pela frente, dá um grito, ou melhor um urro, levanta-o e move o carro, que descaiu para trás, ficando as rodas da frente em cima novamente das traves e as de trás, assentes no chão.
Salta para o volante, faz marcha atrás, e quando a porta do seu lado está frente aos postaletes já referidos, passa o comboio a apitar a avisar que ia iniciar a travessia da ponte.
Um só homem conseguiu fazer o que quatro não tinham conseguido! E ainda há quem não acredite em milagres…
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16.11.09

O BANHO

É responsável por este conto Caditonuno, do blogue “Dono de Casa Forçado”, que ao contar as dificuldades que teve para colocar uma fralda à sua sobrinhita (alvitro a irem lá deitar um olho), me fez lembrar o que passei ao dar banho ao meu filho mais novo, na altura com dois meses.
Já era pai de um menino com 20 meses quando nasceu o segundo. Foi em Setembro, mais propriamente num dos 3 primeiros dias daquele mês do ano de 1982. Nasceu de cesariana, pois o petiz mostrou-se irrequieto e tinha o cordão umbilical à volta do pescoço.
Tudo correu bem e o rapaz arribou rapidamente. No mês imediato, entrámos os quatro num hotel de Benidorm, para fazer 20 dias de férias.
Só um doido como eu se lembraria duma coisa destas. Jantei e almocei sempre sozinho, não obstante a maior parte das vezes o mais velho acompanhar-me, mas saltava da cadeira e deambulava entre as mesas a procurar um amigo de ocasião para brincar. A “Dona” só ia comer as suas refeições depois de dar a mamada ao pequeno, ficando eu depois no quarto em sua substituição para o que desse e viesse.
No regresso, apanhámos cheias torrenciais que inundaram Alicante, mas com maior ou menor dificuldade as coisas lá se remediaram.
Parámos em Toledo, instalámo-nos numa unidade hoteleira e juntámos mais dois dias ao período de férias atrás mencionado.
À hora da partida aproximava-se, tínhamos todas as malas prontas para fazer a tirada Toledo – Lisboa, tendo a “Dona” ido tomar o pequeno-almoço com o mais velhinho, seguindo depois a troca e abalada final.
Aconteceu, porém, que o pequenito, ainda sem 2 meses de idade, resolveu fazer uma valente larada na fralda. Tirei-a, tendo o cuidado de o pôr em cima da cama, mas com uma toalha de banho por baixo, enquanto fui encher a banheira para o lavar. Vocês, mães, podem avaliar a minha atrapalhação, já que era a primeira vez que me vi naqueles cagados e assados. Enchi a banheira até acima e, quando voltei para o levar, estava o moço outra vez a despejar o saco. Pego nele amparando a sua cabeça. As suas fezes, fruto do leite de mamada, é amarelinha e cheia de gordura. A água ficou imediatamente suja e “aquilo” a boiar.
Os seus caracóis ficaram imediatamente repletos daquela pasta. E a lavagem não passou de uma molhadela. Levei-o outra vez para a cama, usei outra toalha de banho, que ficou igualmente suja, tal como a primeira. Em dada altura, reparo que os lençóis estão também impregnados daquela porcaria. Desespero, reconheço que se faz sentir a falta da mãe e o moço tem nova convulsão. Nova banheira cheia, mas esta já está salpicada do banho anterior. O rapaz ficou pior do que primeira vez. Nesta altura já não havia toalhas e até a colcha e os lençóis eram um mar de salpicos.
Quando a “Dona” entrou, deparou-se-lhe um quadro magnífico, que nem o Salvador Dali alguma vez se atreveu a pintar. Pegou no menino, foi ao lavatório e duma penada deu-lhe um banho salvador. Para o limpar serviu uma toalha que tirámos da nossa mala.
Pagámos a conta e partimos sem olhar para trás… O último que feche a porta. Muitas mais vezes já fui a Toledo e lembro-me sempre daquela faceta, das toalhas e roupa da cama salpicadas de amarelo, mas nunca me atrevi a passar naquela rua.
Todos os pais deveriam tirar o curso “Como cuidar de um filho recém-nascido”. De outra maneira, portam-se como uns autênticos tarantas.
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3.11.09

Magusto

Em 1973, a Direcção da Federação Portuguesa de Campismo foi convidada pelo clube de Campismo de Penacova para estar presente num Magusto, que se realizaria naquela localidade, com o patrocínio da Câmara Municipal, também extensiva aos seus familiares.
Confesso que nunca tinha ido a Penacova, que fiquei interessado em conhecer e acima de tudo conviver e comemorar a festa em honra de S. Martinho.
Em casa dos meus pais (dia de anos do progenitor) a coisa piava fino. Era um dia aguardado religiosamente e, na mesa grande, talvez aí de 4 metros de comprido de bancos corridos, sentavam-se para jantar na noite de 10 para 11 de Novembro, além dos da casa, mais uns familiares e amigos, ficando a mesa cheia e às vezes ainda tínhamos de apertar os cotovelos, já que sempre aparecia mais alguém.
O repasto era de primeira qualidade: línguas de bacalhau, caras, lagosta salgada, comprada numa das casas da rua do Arsenal, mesmo ali ao Cais do Sodré – pois é, como na cantiga do Rodrigo. Atum salgado, vindo expressamente da Madeira, acompanhado de couves, batatas, couve-flor, azeite das nossas quintas, água-pé de moscatel e da normal, jarros enormes de vinho tinto da nossa adega e castanhas, muitas castanhas, movendo-se o céu e a terra, porque se fazia questão de serem de Carrazedo de Ansiães. Pela meia-noite era lançados uns foguetes, restos das festas litúrgicas da Nossa Senhora da Soledade.
Foi sempre assim desde que me conheci, mas neste ano resolvi falhar em casa e saltar com os amigos, para estar presente no meu primeiro baptismo de um Magusto fora do meu habitat.
Penacova fica num alto e no largo da Câmara tem um miradouro, de onde se aprecia uma paisagem impressionante. As gentes do campo, com cabazes de verga à cabeça iam chegando e colocavam o que ofereciam para dar de comer aos visitantes. Não contei os presentes, mas posso calcular que seriam para cima de 800, e admitia não ser possível arranjar gratuitamente tanta comida para aquela multidão. Mas o número de ofertantes, conforme as horas se aproximavam, ia aumentando e a dada altura já não havia mesas que chegassem para tanta comida. Desde galos, coelhos, chouriços, presuntos, morcelas, cozido à portuguesa, garrafões e garrafões de vinho, nada faltava, naquelas mesas fartas que as gentes de Penacova desinteressadamente encheram. Com a colaboração do Corpo de Bombeiros, foi feita uma fogueira de tamanho colossal, onde foram colocadas sacas e sacas de castanhas para saciar os nossos desejos.
Pois aquelas mulheres, que trouxeram à cabeça toda aquela comida, algumas dos confins do Concelho, arregaçavam as mangas e deitavam-se ao trabalho de partir, assar, fatiar presuntos, cortar o pão, preparar copos, separar vinhos, enfim, uma organização impecável e digna de ser comentada como exemplo de como se organiza uma festa popular.
Tirei imensas fotografias e ilustro este conto com uma senhora a assar chouriços de sua oferta, que me chamou a atenção pela tamanho do seu bigode, chamuscado pela labareda do álcool e cujo marido aproveitava a ocasião, já com grão na asa, para brincar com o buço da sua cara metade, não se sentindo ela nada ofendida e dando largas à sua satisfação. Admito que deveria ter sido a mais fotografada no magusto.
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19.10.09

Traição

Esta é a cafeteira que guardo religiosamente
e que meu pai me ofereceu após o falecimento da mãe Júlia

A Segunda Guerra Mundial ainda não tinha terminado. O Zé tinha 12 anos, aqueles anos irrequietos a que nenhum menino daquela idade pode fugir. Ainda usava calção e todas as manhãs entrava porta dentro da Escola Comercial, situada no largo do Carmo, ao lado do Convento do mesmo nome, onde em 1974, Marcelo Caetano se refugiou por causa da revolução de Abril.
O meu papá continuava na labuta das quintas, das adegas, do vinho tinto e branco, coisas que para ele não tinha segredos.
Nas adegas com os seus lagares enormes, onde dezenas de homens, arregaçados até às virilhas, pisavam a uvas depois da colheita e de terem permanecido na eira, para adquirirem mais doçura.
Assisti à apresentação de um novo trabalhador, por alguém seu conhecido. O homem falava espanhol e, enquanto dizia a meu pai que necessitava de trabalho para poder sobreviver, acarinhava a minha cabeça, fazendo-me festas.
Cativou-me e foi este “pardalito” que intercedeu por ele e lhe abri as portas do coração do meu progenitor para lhe dar trabalho, iniciando na própria hora.
Demonstrou sempre vontade de cumprir, era zeloso e diligente e tinha vontade férrea de aprender o português. Pernoitava numa povoação ali perto, em casa de quem o apresentou.
Pela noite, na hora de jantar comentava-se a chegada daquele desconhecido a falar espanhol, que conquistou a simpatia de todos, mas cuja profissão, notava-se, nunca teria sido aquela.
Um dia, comprou uma cafeteira de alumínio e com cinzel gravou nela o nome da mãe Júlia e do pai António, desenhando com primor um ramo de oliveira e colocou-lhe data.
Tinha para comigo um carinho tão especial, que sempre que eu tinha oportunidade fugia para junto dele e interrogava-o. De onde era, se era casado, se tinha filhos. Fitava-me, fitava-me e respondia-me sempre com os olhos húmidos de quem queria chorar.
Que tinha um filho da mesma idade que eu, que era viúvo, pois a sua mulher tinha morrido num massacre. Que era um massacre? Fiz a pergunta, tendo-me esclarecido que era uma coisa muito má, que não especificava para não me preocupar.
Como estas coisas não se esquecem mais, sei que trabalhou na nossa casa 7 meses e um dia, deixou de aparecer ao trabalho e não voltou para receber o salário. Soubemos que teve uma discussão com quem lhe tinha dado guarida e arranjado trabalho. Não soubemos nunca a causa da desavença, soubemos um pouco mais tarde o suficiente para perceber a traição que aquele homem sofreu, de quem supostamente o protegia.
Já não recordo porquê, o Zé descia a rua do “Limoeiro”, sobranceira ao Bairro de Alfama em Lisboa, onde está a cadeia do mesmo nome e um pouco mais abaixo a cadeia do “Aljube”, onde eram encarcerados os presos políticos. Ouvi chamar com insistência pelo meu nome, olhei e não via ninguém, mas quem me chamava disse-me para olhar para cima. Atrás das grades da cadeia do “Aljube”, o Miguel, aflito, grita-me com tristeza, pedindo-me para informar o meu pai, de que tinha sido preso. Ia ser devolvido a Espanha e a Franco e seria fuzilado, tendo sido denunciado pelo traidor Carlos, aquele que até então lhe dera abrigo.
Fiquei a saber que se praticava no mundo barbaridade sem nexo. Em casa contei o que ouvi da boca daquele pobre de Deus, que ousara lutar pela liberdade do seu País e tomei conhecimento que ele era fugido da guerra de Espanha e, indocumentado, se refugiara em Portugal. Senti arrepios de frio por achar que aquele homem, e pai, nunca mais teria possibilidades de falar comigo nem acariciar o seu menino, que não via sei lá há quanto tempo.
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30.9.09

O número 9

O número 9 foi o primeiro a fugir à frente do “Novilho”.
Cá está ele com o carimbo no ar. É o primeiro da esquerda.

De seu nome Apolinário, nasceu por volta de 1939/40, numa pequena povoação do sul do Tejo, freguesia de Amora, acrescentando mais uma boca a comer naquela casa de gente pobre, onde já corriam de pé descalço mais 8 irmãos. O progenitor, trabalhador rural, gostava de encostar a barriga no balcão da taberna, dando-lhe jeito aquela posição, porque depois de emborcar uns “baldes de 3” sentia as pernas a fraquejar e assim o apoio dava-lhe a estabilidade que de outra maneira não conseguiria. Era raro o dia que não regressava a casa acompanhado de uma “carraspana”.
O seu menino nasceu com defeito no pé esquerdo e nem a ortopedia conseguiu rectificar a anomalia, ficando, pois, aleijado para toda a vida.
O seu pai, conforme os filhos iam nascendo, atribuía um número a cada um deles. Ao nosso Apolinário, pela ordem do nascimento calhou o número 9 (vejam só que, futebolisticamente falando, a equipa daquela casa seria uma equipa destinada ao insucesso, pois iria ter um avançado centro coxo). As crianças iam crescendo e, quando havia festa na terra, qual bando de pardais, saltitavam pelos carrosséis, pistas de carrinhos de choque, tudo quanto era barracas de feira, enfim dando azo às aventuras das suas traquinices. Naturalmente, um perdia-se, outro achava-se, até que, por muito que se procurassem um deles, não aparecia mesmo. Aí entravam o pânico e apressadamente regressavam a casa ou ao tasco onde o pai estivesse, a dar-lhe conhecimento que o n.º “tal” se tinha perdido na festa. Entre o beber e o arriar do copo, o pai lá ia dizendo que o número tal e o tal fossem procurar o número que faltava, e que os outros regressassem a casa, pois quando ele regressasse fariam as contas. E, no fundo, raras eram as vezes que dava uns açoites no que se portasse mal.
Com 12 anos, o nosso herói começou a aprender a profissão de sapateiro e, mais 2 ou 3 depois, já era exímio na arte de colocar umas tombas, que uns joanetes mais desenvolvidos deformavam os “chanatos”. Usava um sapato especial, dado só conseguir arriar no solo o peito do pé, ficando o calcanhar no ar, assim como os sapatos de salto alto, que as senhoras tanto gostam e que tanto mal lhes fazem. Por isso o seu andar acabava por ser muito cadenciado e dando um toque sempre que batia no chão. A seguir ao ofício de sapateiro, teve vários trabalhos, até que ainda novo acabou por se reformar.
Na localidade há uma colectividade que, entre outras, tem a secção de atletismo e consequentemente corredores de fundo. Na altura que iniciou a aprendizagem de sapateiro, o Apolinário, aproveitando a distracção de uma galinha e do seu dono, corredor de fundo no clube, pegou no galináceo, meteu-a debaixo do braço e ala pernas que vos quero. O animal faz barulho, o dono dá por isso e desata a correr para apanhar o “larápio” furtivo. Impossível. O coxo demonstrou ter competência para fazer parte da equipa de atletas lá da terra e não foi apanhado.
Nunca gostou que lhe chamassem coxo e afinava seriamente se percebia que alguém o fazia maldosamente, tendo no entanto por vezes atitudes de humor relacionadas com a sua infelicidade.
Certa vez, um amigo convidou-o para no seu automóvel irem dar um passeio a Évora e foram almoçar num dos restaurantes da cidade, que tem um balcão de serviço de ”barra” e pavimento de soalho de madeira. O silêncio foi interrompido pelo toque, toque do pé do Apolinário, a dirigirem-se para uma das mesas vagas e, por detrás deles, em voz bastante acentuada e sotaque alentejano, alguém diz assim: É com…padre, empres...te aííí o cárim...bo.
Olham para trás e toda a gente comia em silêncio, como se nada se passasse. A cara do Apolinário tornou-se em arco-íris, sentou-se e desabou a sua ira com o companheiro de viagem. Não conseguia empurrar o entrecosto com as batatas pela goela abaixo e lamentava não saber quem tinha sido o alarve que se tinha metido com ele, que lhe daria com a bandeja pela cabeça abaixo. Acabado o almoço, e quando já se encontravam à porta de saída, do balcão, onde vários clientes bebiam cerveja alguém atira com esta: Com...pádre... ‘stá áqui á tinta... pró...cárim...bo. Desatam todos a rir e o nosso amigo fez promessa de nunca mais ir a Évora. O Zé chegava a estar entre 6/7ou 8 anos sem o ver. E somente eu era capaz de, sempre que nos encontrávamos, ter a coragem de lhe perguntar se já tinha almofada nova para o cárim...bo.
Entre um abraço forte, ia-me dizendo ao ouvido que só de mim admitia tamanho insulto, acabando por rirmos à gargalhada.
Adorava touradas, o nosso n.º 9, e lamentava-se de ser coxo, impedindo-o por isso de tentar ser toureiro. Sempre que havia uma novilhada lá estava na primeira fila para se deliciar e fazer uma faena. Certa vez, convidei-o para ir comigo a uma tenta que se realizava numa quinta agrícola em Salvaterra de Magos. Pelo caminho não falou de outra coisa que não fosse de touradas, toureiros e seus trajes. Perdeu o pio e pediu-me para não dizer a ninguém, quando se abriu a porta do curro e em vez de entrar na praça um novilho, entrou um “jerico” bebé aos pinotes, fazendo os 3 candidatos ocasionais a darem de “frósques”.
Evidentemente ficaram aprovados em simulação de fugida.
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11.9.09

Vinho


Moscatel, feito pelo pai do Zé em 1944. É a única que existe

Já várias vezes referi no meu blogue que o meu pai era vinhateiro. Tinha quintas, pessoal, tinha o João Pião que deu motivo ao meu conto sobre o jerico.
Recordo com saudade a grandiosidade das adegas, dos lagares, dos tonéis, das pipas, dos barris, dos funis de madeira, das prensas de pedra para espremer os engaços, os chapéus dos trabalhadores sujos com o mosto, de uns anos para os outros, por transportarem à cabeça as uvas das camionetas para os lagares e a pisa cadenciada, sem cantares nem concertina (isso eram coisas do Norte), mas em alternativa havia sempre uma anedota mais picante que às vezes roçava o ordinário.

O pai António era um homem organizado e, quando chegavam os últimos dias de Julho, pegava na sua pasteleira e ia até Cabanas, povoação do concelho de Palmela, onde um amigo de longa data era o seu representante na região, para lhe dar dicas das propriedades onde as cepas estavam mais compostas e com perspectivas de bons cachos para fazerem vinho.
É que, para a quantidade que necessitava para fazer o precioso líquido, as uvas das suas propriedades não chegavam, tendo por isso de negociar com outros agricultores.
O Zé vivia habituado a tudo aquilo e ano após ano o ritual repetia-se. Como eu recordo as uvas comprada na Barra Cheia, concelho do Barreiro, a uma senhora solteira já a entrar na casa dos 60 anos, mulher do campo, que só uma vez sonhou em namorar, e até esse pretendente não passava do Stº. Hilário, imaginário que a aguardaria num dos corredores do céu, no sentido de lhe pedir contas pelo facto de não ter arranjado marido para a ajudar nas lidas do campo.
O negócio foi de vulto e a senhora, convidada do meu pai, teve honras de embaixadora em representação da Barra Cheia para comer e ficar em nossa casa com a sobrinhita a um fim de semana, depois de receber o valor das arrobas de uvas, pesadas na balança de pilão, que a sua quinta tinha produzido.
Já depois de deitadas, não recordo porquê, a mãe Júlia teve necessidade de entrar no quatro. Bate, entra e depara com a D. Cesaltina com as suas próprias cuecas (tipo clótes) enfiada na cabeça, onde no sítio da “parrachita” aparecia uma mancha amarelada, fruto de uma mijadinha menos controlada. O Zé, que tinha sido admoestado para não entrar, mas não fugiu à tentação de dar uma olhadela, e como seria de esperar desatei a rir à gargalhada, pois as pernas da peça em causa não deixavam ver as orelhas.
Prometi a mim mesmo não contar a ninguém o que tinha visto, coisa digna de um filme-comédia italiano dos anos 60. Podem calcular que cumpri escrupulosamente e no outro dia não contei a alguém que se chamasse ninguém, mas em contrapartida não houve gato nem cão que não ouvisse da minha boca a historia das cuecas enfiadas na cabeça.
Quantas vezes fui ao Efem Rodrigues, à Rua da Prata em Lisboa, buscar as análise que com toda a regularidade o meu pai mandava fazer ao vinho e comprar produtos de correcção, de forma a manter inalterável a qualidade do precioso néctar.
E até a mãe Júlia, aproveitada bem a ocasião para fazer um doce de uva, coisa que jamais comi de paladar tão requintado. Nada igual ao que já provei recentemente e adquirido em supermercado.
Em Monsaraz, quando numa extensão da visita que fiz a Alqueva, para apreciar a barragem que originou o maior lago artificial da Europa e que num futuro muito próximo se tornará no maior lago conspurcado do Mundo, tais são as imundícies que por ele flutuam, adquiri um frasco de doce de uva branca, que comprei imediatamente para fazer comparação com o que as minhas glândulas gustativas acusam e fiquei mais uma vez decepcionado.
Em traços gerais, estas são recordações que tenho das azáfamas do Vinho e dos meus tempos de menino.
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1.9.09

Fim-de-semana na Serra da Estrela


Foto tirada da net

O nosso país era comandado pelo general Ramalho Eanes (patente que lhe foi atribuída propositadamente para ocupar o cargo), natural de Alcains, terra que como todos sabem fica no sopé da Serra da Estrela. Num fim-de-semana, acompanhado do nosso cachorrinho ainda bebé, resolvemos ir ao local mais alto de Portugal. O “brinquedo”, que por sinal os meus visitantes já conheceram na fase adulta, através do meu conto de 22 /09/08 denominado “O meu cão fiore”, mordia tudo quanto lhe aparecia pela frente. Na noite de Sábado para Domingo, em Alcains procurámos alojamento na estalagem e ficámos a saber que naquela unidade hoteleira era interdita a permanência de cães. O céu caiu-nos em cima, era tarde e optei por falar ao coração do empregado, dizendo que o cachorrito era muito dócil, não ladrava, era muito educado e até sabia fazer as contas conjuntas do abono de família com os subsídios escolares (ainda não havia a Universidade Independente, nem o computador Magalhães), um autêntico prodígio e portanto não iria incomodar ninguém. Consegui demover o moço e ultrapassar a rigidez dos regulamentos. Foi ele quem nos arranjou um cabaz transformado em alcofa/cama, de modo a que os outros hóspedes não dessem pela marosca. Ao dirigir-nos para o quarto, passando pela sala de jantar, a “criança” deu pelo cheiro de comida e aprontou-se imediatamente para saltar cá para fora. Foi o Diabo! Lá o tapámos, lutando contra a sua insistência, metemo-lo na casa de banho, lavámos as mãos, fechámos as luzes e fomos jantar. Pelo corredor ouvimos o seu “choro”, jantámos carne e metemos uns bocados embrulhados num guardanapo para a sua refeição.
O seu rabinho abanou de felicidade ao ver-nos e lambeu-se ao comer com sofreguidão… Colocámos um jornal no chão para a hipótese mais do que provável de querer fazer as suas necessidades fisiológicas.
Dormimos tranquilos. O “bicho” portou-se bem. Mas pela manhã, quando entrei na casa de banho meti as mãos à cabeça. A tampa da sanita, que era de madeira, tinha-se atirado a ela com unhas e dentes, do piassaba pouco restava e uma das paredes que era forrada a papel encontrava-se em mísero estado. O pequeno-almoço foi tomado em desassossego. O “Fiore” tinha mostrado a sua raça. Na recepção denunciei os seus crimes, mas o empregado, com um sorriso nos lábios mandou-nos embora, sem ter ido observar os estragos. Acho que fez mal…
Partimos para Seia e subimos ao Sabugueiro. Na casa de uma pastora comprei um queijo, que ainda estava na cura colocado numa tábua por cima da chaminé. Quis comprar pão e vinho para, em plena serra, fazer o papel de Marcelino. Pão não havia, mas a senhora que nos vendeu o queijo foi simpática. Pegou numa garrafa vazia e mandou o filho comprar o precioso líquido. Oferecendo-nos... Em todo o lado há gente simpática, gente boa, gente simples, humilde que sente prazer em fazer bem.
Em plena serra, já tarde, mas a servir de almoço, lançámo-nos ao queijo, mesmo sem pão, e dei uma golada pela garrafa.
Os “tintins” caíram-me ao chão. A garrafa tinha servido a aniz e dentro dela ainda tinha a árvore com o açúcar… Era impossível beber aquela mistela e continuar a mastigar só queijo e até o “Fiore” desistiu!
Barrigada de fome para mais tarde recordar. Tivesse tudo corrido normalmente e não estaria eu agora a contar estas aventuras.
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10.8.09

Festas de Cáceres

Era Novembro, o Inverno ainda não tinha chegado mas a efervescência da revolução em Portugal ainda não tinha arrefecido os ânimos. A minha “Dona” prestava serviço num hospital de província e só às quartas-feiras deitávamos o olho um ao outro.
Com muito regularidade, dávamos um salto a Cáceres – Espanha e regressávamos sempre ao por do sol. Até que um dia resolvemos ficar, dado haver festa na cidade e querermos aproveitar a experiência de ver usos e costumes da região.
Quando chegou a hora da deita, fomos procurar hotel e a todos onde batemos à porta estavam esgotados. Fomos ao Montijo, terra que fica a poucos km e o resultado foi o mesmo. A “Dona” desesperava e eu, sem o demonstrar, estava desanimado. Como último recurso, optamos para sair da estrada e ficar dentro do carro, em campo aberto, com receio de algum assalto. Entrei num campo com os médios acesos, apaguei-os, passámos para o banco de trás, coloquei os sapatos debaixo do carro para arejarem e com o intuito de ter os pés à vontade, aninhamo-nos e batemos talvez duas a três horas de sono. Quem já dormiu dentro de automóvel sabe que assim que o dia começa a raiar acordamos. Abri os olhos, esfrego as pálpebras, e que vi eu? Senti um arrepio, que nem sei se foi espinha pela abaixo ou pela espinha acima.
Tínhamos dormido em pleno acampamento de ciganos, estávamos rodeados de carroças, toldos, mulas, burros, enfim a caravana completa. Nem abri a porta para passar ao meu lugar no volante, passei por cima do banco e guiei até chegar à estrada, só aí reparei que tinha deixado os sapatos para trás.
Durante muito tempo, sempre que no meu caminho se cruzava um cigano, olhava imediatamente para os seus pés, para confirmar se tinha os meus sapatos calçados.
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29.7.09

Vamos limpar Portugal


O computador e a Internet de mãos dadas, conseguiram criar laços entre pessoas nunca antes conhecidas.
É certo que 95% continuam sem se conhecer, mas trocam ideias, confessam ideais e até já se fazem confraternizações que servem para um conhecimento ao vivo.
Por impossibilidade, não estive num desses encontros, todavia, confesso, muito lamentei.
Como compensação, desloquei-me propositadamente ao Porto, para conhecer a sua organizadora e o marido. Senti-me feliz por isso.
Recebo agora da nossa “blogueira Mariazinha”, um convite a aderir à iniciativa de “Vamos Limpar Portugal”.
Admitindo tratar-se de brincadeira, e como Portugal está cheia de lixo de lés a lés (incluindo a minha presença), sugeri, com humor ou não, uma maneira de entre 1.000 efectuar a limpeza dos políticos, com o pensamento no livro de culinária “1.000 maneiras de cozinhar bacalhau”.



Na “casa da Mariquinhas”, A. J. Soares, respeitável “jovem”, que admiro e venero, picou-me dizendo que estava com curiosidade em ver o post que sobre o assunto colocaria no meu espaço.
Com capacidade de redacção, esperava que fosse um primor em poder de persuasão dos portugueses mais distraídos.
Se essa limpeza se refere a percorrer as bermas das estradas e apanhar toda a espécie de objectos que são deitados à rua, pelos automobilistas, ou os entulhos, restos de obras, incluindo colchões, fogões, assadores, etc, etc. tomo o compromisso solene perante a Mariazinha de colocar à sua disposição a boa vontade do Zé, com a oferta de dois dias de salário de um trabalhador.



Se em vez disso, for por exemplo, além da limpeza, denunciar os pseudo construtores, patos bravos, desonestos que fazendo dos outros parvos, (mas que o Código Penal protege), vendendo gato por lebre e não cumprindo depois com o respeito dos 5 anos de garantia, que a lei impõe, também estou disponível para o fazer.
Sobre a classe política, já dei a minha opinião e garanto-vos não retiro uma virgula do que escrevi.
Quem acompanha os escritos do Zé, não tem dificuldade em perceber, que não sou letrado, tendo apenas o curso comercial, acabado em 1.947, fraco de inspiração, limita-se a contar facetas da sua vida (quem as não têm?) como maneira de passar os dias que lhe restam de vida.
Já não sabe fazer pontuações (se é que alguma vez as soube) e os erros de ortografia é o seu pão de cada dia.
Pelas razões expostas, não poderá por escrito ser eloquente e persuadir os portugueses a terem comportamento civilizado, quando toca a quererem desfazer-se do seu lixo.



Os organizadores deste tamanho trabalho, terão que contar com a ajuda da Impressa escrita, da Rádio, da Televisão, das Câmaras Municipais, das Escolas, dos Empreiteiros com as suas camionetas e máquinas, de forma a mobilizar um milhão de pessoas , para que se consiga alguma coisa que se veja, criando ao mesmo tempo condições para que se não repita.

EU ACREDITO…. Chega-te a nós, dá ideias, informa da tua disponibilidade, e atira o teu nome para o blogue de A Casa da Mariquinhas:
Deita o olho ao que se passou na Estónia. 5 horas bastou para ficar limpa.
http://www.youtube.com/watch?v=T7GZfMD6LHs
Um abraço a todos os colaborantes, e tu deita também mãos à obra….
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22.7.09

A carta de condução - Parte II


A recepcionista informa-o de que a consulta custava cinco mil escudos, sendo-lhe respondido que nada tinha a pagar, em virtude de estar ali por ordem do médico proprietário do consultório.
Quando chegou a sua vez, foi chamado e a empregada, para salvaguardar a sua responsabilidade, informa o especialista de que o Sr. António achava que nada tinha a pagar. O António explica que não estava preparado com aquela quantia, dado a consulta inicial ser “vinte escudos”.
Nestas circunstancias, o médico disse que sim, que nada teria a pagar e iniciou a 2ª fase com a apresentação de um tabuleiro, com tubos de aguarelas e perguntando uma a uma as suas cores. Não é difícil reconhecer o vermelho, o azul, o amarelo, o verde, aquelas cores bases que todos nós conhecemos do dia a dia. Mas saber os nomes de cores, que nunca viu, que não são roxas nem azuis, cores que se esbatem noutras, acabou já farto daquilo, por dizer ao Médico, que nunca pensou que para fazer um exame de condução, tivesse que tirar primeiramente um curso de tintureiro.
Depois colocou sobre uma secretária, um quadro com riscos feitos de lápis finíssimo de várias cores, entrelaçados entre si, mete-lhe na mão um ponteiro e ordena que seguisse determinado traço até ao fim. Para ver se o meu pai o fazia correcto, o médico colocou os óculos e o meu pai pediu ao médico que lhe emprestasse os ditos, já que os traços eram tão finos e confusos que seria impossível fazer aquela operação, sem ajuda de lupa.
Que não, que o examinado era ele e teria que fazer aquele exame sem qualquer ajuda. Nessa circunstância houve desistência imediata, mandou o Sr. Dr. ir apanhar os ovos à capoeira, porque as galinhas há muito que já cacarejavam, partindo de regresso a casa com o famigerado papel emitido no Gama Pinto, obrigando o Delegado a passar-lhe o atestado para o exame de condução.
Nos dias aprazados, todos os condutores têm nervoso miudinho e o António, não fugiu à regra, até porque a condução é feita sem acompanhante e nem nessa ocasião sabe as ruas por onde vai circular. O examinador explica-lhe que terá de seguir em frente, virar à direita, esquerda ou parar, mediante toque da buzina do automóvel que o antecede e onde vai observando as azelhices do candidato.
Enfia o capacete, aperta a fivela e deixa de ouvir bem, pois os capacetes da época não eram tão sofisticados como os de agora. Arranca, e ouve apito daqui, apito dali e com atenção redobrada ao que fazia e ouvia, desde que ouvisse um apito, seguia as instruções que lhe deram, só parando quando um sinaleiro o manda parar. Olha para trás e não vê o carro com o examinador. Tinham-se perdido um ao outro. Faz volta para trás e foi para o local do início do exame esperar pelo examinador que entretanto o procurava pela cidade.
Ficou aprovado… Não foi com distinção… mas foi o suficiente para percorrer milhares de quilómetros com aquela máquina de duas rodas, que fazia as delicias de qualquer jovem e onde o Zé só se assentou e lhe pôs a luva quando a fui buscar no dia da compra.Quanto ao Delegado de Saúde, não voltou a pedinchar um garrafãozito de água-pé, era capaz de levar por lapso (!) alguma pinga rotulada de grande qualidade, mas já em fase muito adiantada para fazer vinagre…
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13.7.09

A carta de condução


Já passaram 50 anos. O pai do Zé (de seu nome António) resolveu tirar a carta de condução para conduzir moto, até 200 cm3.
Para a sua idade e pessoa ligada ao campo mexia-se muito bem, pois diariamente percorria uns largos quilómetros de “pasteleira” nas andanças pelas suas quintas.
Homem de outra época, quis aderir à modernice do transporte motorizado e adquiriu uma scooter da marca “Lambreta”.
Era a moda, o progresso em desenvolvimento constante.
Foi o Zé que a foi levantar a um stand ali para os lados do Conde Redondo. Reluzia, era linda.
Ao António faltava o documento que o autorizava a conduzi-la. Em curso acelerado, tratou de ler e reler o código de estradas e a aprendizagem prática foi feita dentro de uma das suas quintas, sem prejuízos de maior, já que os pessegueiros e as cerejeiras não se queixavam pela quebra de algumas pernadas, quando precipitadamente se enfiava por elas dentro.
Para se candidatar ao exame teve que ir ao Delegado de Saúde do concelho, tendo este que atestar a sua robustez, saúde mental e aptidão para o efeito.
O médico, seu conhecido de longa data e em especial pelo S. Martinho, quando visitava as nossas adegas para levantar à “borliú” uns garrafões de água pé, feita com uvas moscatel, coisa em que meu pai tinha tanto orgulho, pois não era vulgar os vinhateiros usarem uva tão nobre.
O meu progenitor era pessoa saudável e tinha boa vista, pelo que nunca compreendemos por que carga de água o Delegado resolveu mandá-lo fazer um exame aos olhos, numa policlínica onde trabalhava um especialista seu amigo.
Com uma “cachola” enorme, onde nem com certeza caberia um saco de batatas, lá foi, dando ais à vida, como se tratasse de ir ao cadafalso.
Depois de ler a carta que lhe era endereçada, o especialista fez um exame de tal forma rigoroso, que aí o paciente (?) desconfiou. Alegando que necessitava de fazer um exame, que ali não dispunha de condições, mandou-o ao seu consultório particular, sito nos Restauradores.
O “velhote” teve medo de alguma tramóia e nos entretantos de uma e outra consulta arranca à papo-seco, direitinho para a rua do Passadiço onde marcou e teve consulta imediata no Instituto Gama Pinto. Explicou que a necessidade da consulta se ligava a exame de carta de condução.
O exame foi feito, demorou o seu tempo e duas horas depois encontrava-se na rua com o papel devidamente autenticado, atestando que não sofria de qualquer anomalia na vista.
Mesmo assim, com receio de que o médico da policlínica, amigo do delegado, informasse este de que a consulta tinha sido abandonada, foi aos Restauradores sujeitar-se à continuidade da dita..


Segue na próxima semana – tempo suficiente para se preparar para o exame.
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29.6.09

PECADOS MEUS


Os meus contos não obedecem a datas nem a qualquer outra ordem. Saem repentinamente e quando escrevo um, estou imediatamente a lembrar-me de outro.
Isto a propósito de o anterior ter alguma ligação à religião e este seguir a mesma linha.
A “faena” acontecia na altura em que o Zé teria 14/15/16 anos, época própria para os jovens apanharem uns “borrachos” bem dados e merecidos, pela prática de devaneios e despropósitos.
Com aquela idade, são eles que sabem tudo, são eles que não recebem conselhos de ninguém e são eles que se apanhassem uns sopapos na altura certa não lhes faziam mal algum, antes pelo contrário.
Isto nos anos quarenta, porque se fosse agora, os pais, primos e avós metiam-se numa carga de trabalhos, pois os meninos recorriam ao psicólogo, às entidades policiais, ao Ministério Público e o assunto chegava à Assembleia da República, com a condenação dos agressores, dado que os direitos de vândalo tinham sido violados.
Mas vamos ao conto.
Durante o reinado de D. José, era seu ministro Sebastião de Carvalho e Melo, só mais tarde Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, que deixou marcas para todo o sempre neste Portugal desgraçado. Ele protegeu e criou a primeira região demarcada de produção vinícola do mundo, em defesa do Vinho do Porto; ele mandou reedificar Lisboa após o terramoto de 1755; mandou edificar Vila Real de Santo António para afrontar os espanhóis; ele limpou de uma assentada a família Távora de uma forma sanguinária e presumivelmente nunca vista. Ele tem em Lisboa a estátua mais imponente de toda a República.
Aquando do terramoto atrás referido, as águas subiram e toda a zona ribeirinha do estuário do Tejo subiu, subiu, levando atrás de si morte e desgraça, dando continuidade à destruição iniciada com o tremor de terra. Nas aldeias da região todos os sinos tocaram a rebate e, no final, enterraram os mortos e cuidaram dos feridos.
E a partir daí, no dia 1 de Novembro de cada ano, muitas dessas povoações fazem sair as procissões das suas igrejas, para comemorar a interferência divina naqueles acontecimentos.
Como já vos contei no conto anterior, na povoação do Zé não existia igreja e, sendo também zona ribeirinha, não sei onde os meus conterrâneos fizeram as suas preces, nem por quem chamaram, na hora do aperto.
Cada povoação relembra o dia à sua maneira e na igreja mais próxima do meu sítio, edificada bem lá no alto para marcar a sua imponência, começam na véspera os actos litúrgicos, terminando ao fim do dia com uma ladainha.
A Igreja fica cheia como um ovo, mal nos podemos mexer, o povo está de pé a ouvir com toda atenção; o padre, normalmente convidado e vindo doutras paragens. A sua eloquência é apreciada e compara-se com os dos anos anteriores.
Mas a época, além das festividades religiosas, também é tempo de castanhas, de frio e chuva, que leva a que os paroquianos não larguem o chapéu-de-chuva e o abafo. Podem imaginar, pois, os chapéus molhados, os sobretudos e gabardinas encharcados, a multidão comprimida, o cheiro que aquilo tudo tem. Não há incenso que nos valha.
Pois além disto tudo, o Zé enchia as algibeiras de castanhas assadas ou cozidas (gosto das duas) e enquanto ouvia o sacerdote comia castanha atrás de castanha e metia as cascas no chapéu de chuva de quem estivesse mais perto de si, já que o seu proprietário estava com a máxima atenção e cabeça no ar ao que o padre dizia.
Quando tudo terminava, o Zé marchava imediatamente para fora do templo, para ter o gozo supremo de ver o dono do chapéu abrir o dito e apanhar com as cascas das castanhas pela cabeça abaixo. Passei palavra e, nos anos seguintes, os companheiros de aventuras espalhavam-se por vários locais estratégicos da igreja, para repetirmos a façanha, ao ponto de ao terceiro ano o padre, do seu púlpito, comentar a graça da desgraça praticada na casa de Deus.
Nunca fui, nunca fomos apanhados, mas sinceramente confessem, com toda a graça que isto possa ter agora (o crime já prescreveu), não eram uns açoites bem pregados, dado que nunca houve um chapéu-de-chuva pelas costas abaixo?
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15.6.09

SE DEUS QUISER



Como é que alguém que não faz nada tem lata para dizer que está de “vacances”?



O Zé é católico como a maioria dos portugueses, o Zé respeita a religião cristã como a maioria dos portugueses, mas o Zé também não frequenta a igreja como a maioria dos portugueses.
No lugar onde nasci não havia igreja e ainda hoje ela não existe, embora o sítio já faça parte integrante de uma cidade. Claro que sim. Sou baptizado e tenho orgulho nisso, mas não tivesse sido uma conterrânea a pegar pela mão uma vintena de rapaziada e levar-nos à molhada à igreja, pedir ao padre para nos baptizar, decerto estaríamos todos no rol dos renegados de Deus.
Fiz esta introdução para compreenderem as razões porque, respeitando-a, vivi sempre com indiferença perante e com a igreja. Uso, também como grande número de portugueses, um fio de ouro ao pescoço, onde está pendurado uma cruz com um Cristo crucificado e, nas horas dos apertos, me venham à lembrança todos os Santos dos Céus.
Já não recordo há quantos anos isto se passou. Garanto-vos todavia que foi há muitos, muitos mesmo, aí para 50.
Tinha um “Ford: Anglia-Fascinante”, viatura conhecida pelo “Ora Bolas”, e um dia chegou a hora de o mandar às urtigas e trocar por outro também da Ford, mas mais potente, airoso e mais a meu gosto.
Em Setúbal, no “Stand” da marca fiz o negócio, mandei ajeitá-lo à minha maneira, peguei nele e coloquei-o na garagem.
Nessa noite, enquanto jantava com meu irmão e a mãe Júlia, disparei a noticia, desta maneira:
Mãezinha, comprei um carro novo e no próximo Domingo, como de costume, vamos a Fátima. Tendo ela retorquido: “SE DEUS QUISER”.
Não, mãe Julia, o carrinho está na garagem e quer Deus queira, quer não queira, no próximo Domingo a ida a Fátima é uma certeza.
O meu irmão, único e mais velho, aproveitando a embalagem anuncia que também iria, levando a sua mulher e filhos, e que levaria comida para todos. Portanto, perspectiva de um pic-nic em cheio.
No Domingo aprazado, a família “Quincoces” estava pronta para ganhar a batalha do asfalto, visitar Fátima, pagar alguma promessa e inaugurar o conta-km, daquele que eu tinha destinado para ser meu companheiro de aventuras durante alguns anos.
Cheguei pelas 9 horas e os poucos mais do que 100 km do destino final não se faziam como agora, numa correria desenfreada pela auto-estrada.
Meu irmão no seu “carocha” esperava-me ansioso, a mãe Júlia coloca uma manta sobre os joelhos, o meu pai senta-se ao meu lado (que era isso de cintos de segurança nessa altura?), meto a chave na ranhura, dou à ignição, ponho o motor a trabalhar, meto a primeira velocidade, e… (que se passa meu Deus…) o bólide dá um ultimo suspiro, foi-se abaixo e finou-se naquele momento. Trabalhar não era com ele e andar… zero, tal e qual um burro teimoso. Entro em desespero, salto com raios e coriscos, faço mil tentativas e o resultado foi sempre o mesmo. O filho da mãe do Ford, não respondeu perante tantas insistências. Ali paradinho, no mesmo local onde eu julgava que se ia iniciar a viagem do seu baptismo.
A mãe Júlia, impávida e serena, com a sua cara cândida, olha-me nos olhos e diz assim: “Se Deus quiser, meu filho, se Deus quiser".
No outro dia pela manhã, um pronto-socorro encarregou-se de o levar de volta para Setúbal e no Domingo seguinte lá se realizou a viagem a Fátima, sem o brilhantismo desejado, pois os nossos corações batiam de forma diferente…
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1.6.09

O Vendedor de Peixe



O Peixeiro era um homem de trabalho, sempre correndo atrás do seu burro, numa azáfama constante.
Dedicava-se à venda porta a porta de peixe que ia buscar a Sesimbra, na luta pela vida que poucas vezes lhe sorria.
Calcorreava diariamente os largos km que separavam a sua terra natal daquele vila piscatória, que nesta altura está transformada numa das mais afamadas estâncias turísticas da nossa terra.
Chegava sempre cedo na ânsia de assistir aos primeiros pregões da lota, que na altura era efectuada em plena areia da praia, ali ao lado da Fortaleza. De quando em quando, lá se ouvia a sua voz para arrematar uma parcela, sempre prejudicada por alguém que se lhe adiantava. Negociava portanto com quem se adiantou, ocasionando por isso mais um pagamento de intermediário que, não sendo pescador, estava sempre à coca de ganhar a vida à custa de outros.
Não sei se os meus visitantes alguma vez apreciaram aquela lota, aquele movimento.
Pela noite, os barcos a chegarem da pesca, vindos directamente ao areal. A descarga do peixe que, na hora, era imediatamente separado e colocado um a um sobre montinhos de areia para apreciação. O peixe-espada de Sesimbra, com a sua cor prateada, os pargos, os robalos, os chocos em celhas de madeira, o imperador, as lulas, espectáculo inolvidável.
A cantilena do pregoeiro leiloando os quinhões e os burros que esperavam pacientemente pelos seus donos, para depois alongarem com as caixas do pescado no seu regresso às origens para fazerem a venda às primeiras horas do dia.
Digo-vos que sou um dos felizardos ainda vivo que assisti a tudo quanto acabo de narrar. Jamais se poderá ver outra vez tamanho beleza.
Então o peixeiro corria, espicaçava o jerico na tentativa de chegar primeiro do que outros concorrentes da mesma região e que também se dedicavam àquele comercio.
O Miguel, assim chamava ao quadrúpede, estava velho, o cabelo já estava a ficar russo e demonstrava algum cansaço.
Um dia, num Domingo, o burro do peixeiro livre das caixas do seu fadário, pastava no sem quintal tranquilo quando o dono, usando palavras mais ásperas resolveu ir ao mercado de Coina vender o animal. Não sei se este teria percebido a trama que lhe era preparada, mas como não tinha remédio nem vontade própria lá foi, para onde Deus quisesse.
Nos mercados, a ciganagem são os reis e senhores do negócio da burricada e portanto sempre aparece alguém para fazer um negócio, oferecendo pouco, dado aquela carcaça velha já não ter mais para dar ao seu dono. Iria acabar, decerto, no Jardim Zoológico servindo de petisco aos leões.
O peixeiro, ao ouvir estes comentários desfez-se por tuta-e-meia de quem o tinha ajudado uma vida inteira.
Almoçou numa das barracas desmontáveis da feira e resolveu ir procurar outra animal para substituição do Miguel.
Aproximou-se de outro grupo de ciganos e, fazendo escolha, encontrou um do seu agrado. Estava tosquiado, tinha desenhos no lombo, lavado, parecia jeitoso. Perguntou o preço e arrepiou-se; a venda de um não dava para pagar o outro. Teve por isso de desembolsar forte maquia.
Negócio fechado, lá marchou de regresso a casa com o seu novo companheiro da árdua luta.
Tratou de lhe pôr nome e, para esquecer mais depressa o Miguel, chamou-lhe Jeremias.
Perto de casa, parou para falar com um amigo e contar-lhe o seu negócio. Largou a reata e o Jeremias partiu sozinho a caminho do palheiro.
O homem do peixe ficou surpreso, observou o Jeremias melhor e chegou à conclusão que comprou pela tarde o Miguel que tinha vendido pela manhã.
Os ciganos tinham-no tosquiado, fazendo uns desejos no corpo, uma trança no rabo, lavado, parecia mais novo. Não sei como a coisa acabou, pelo menos que eu saiba não foi à conservatória alterar o nome do bicho…
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19.5.09

O gato da vizinha



Que saudades tenho dos tempos em que era criança. Que saudades dos tempos em que não me ralava com nada. A única preocupação que tinha era inventar alguma coisa para brincar e ter companhia para essas brincadeiras.
O tempo das alpercatas com sola de corda, da bola de borracha, da de couro com uma bexiga de porco lá dentro e aquela deixava de ser redonda.
Do tempo em que o vinho era comprado em garrafas que levávamos às tabernas e trazíamos a quantidade que queríamos, consoante o dinheiro disponível.
Nesta altura tudo é diferente e até o vinho já nos aparece em casa, trazido por um carro cheio de publicidade a várias marcas do precioso “néctar”, comprado através da net.
Os recipientes de vidro com a continuação de meter vinho lá dentro, vinho que saía do tonel ou do barril, sem passar pelas maquinas depuradoras como existe agora, criava como é evidente uma sujidade na base interior junto ao rebordo.
Claro que era preciso de quando em quando fazer a sua limpeza, usando as pessoas as mais variadas imaginações para conseguir os seus intentos.
Uns colocavam areia lá dentro com água e agitavam, outros usavam sal e alguns até chumbos de cartuchos de caça. No fundo, o que se pretendia era a sua limpeza.
O António Catarino, nome da personagem deste conto, não fugia à regra e primava pela limpeza da sua “botelha”, fazendo mesmo alarde de quando ia à adega de meu pai, a sua ser a mais limpa, a que mais reluzia.
Era caçador e portanto tinha à mão os chumbos milagrosos com que mantinha a sua muito mais limpa do que a dos outros.
Certa vez, passou uma boa hora a fazer a limpeza semanal e quando o vidro estava límpido, transparente, dirigiu-se à adega que era bem perto da sua casa, não tendo reparado que ficaram lá dentro algumas bolinhas de chumbo, tendo mandado encher o garrafão com cinco litros do tinto.
Já noite, jantou, “mamou” uma quantidade do copos que fazia parte da sua satisfação plena e duas ou três horas depois sentiu-se mal, sentindo a cabeça a andar de roda as pernas sem poderem com o peso do corpo.
Atribuiu aquela má disposição ao vinho bebido e, portanto, tratou de procurar a casa de meu pai para lhe dar conta da sua insatisfação pelo vinho que tinha levado.
Toca o badalo do portão, o meu pai descansava no primeiro andar da habitação e o Catarino desata a chamar com voz bem alta.
Sr.Antonio, Sr.António, chamou em voz alta. Foi ouvido e reconhecido. O António salta da cama abre uma das janelas da casa e perguntou. Catarino, que queres tu a estas horas?
- Sr. António, o que é que você pôs no vinho hoje?
- Nada Catarino, que havia de lhe pôr?
- Pôs, sim senhor, pôs alguma coisa. Diga lá o que é que pôs.
Não estando para aturar bebedeiras, o António, meio aborrecido, visto ter reparado que ele estava com grão na asa, perguntou:
- Catarino, qual a razão porque dizes isso?
- Sr. António, depois de beber, senti-me mal, vim à rua, dei um «pum» e matei o gato da vizinha.
Pobre Catarino, que o seu “Deus” o tenha em bom descanso, porque mesmo bêbado humor não lhe faltava.
Tinham-lhe contado aquela anedota e como usava chumbos para limpar as suas garrafas quis ao vivo brincar com o meu pai.
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4.5.09

Carnaval nas Belas Artes


O Zé com o seu grupo “Os Lacinhos” no Carnaval das Belas Artes


Fui sempre um entusiasta pelo carnaval. Tinha parceiros fixos e habituais para brincadeiras carnavalescas. Quando chegava a época, o Zé e os seus pares escolhiam um local de diversão e partíamos de abalada para uma noite de rebentar o balão.
O traje era o de ocasião, conforme o local e a “faena”. Ficar a ver passar o Carnaval ao meu lado sem procurar fazer parte não era coisa para o meu feitio.
O ano já não recordo, sei que já passou muito tempo, talvez no princípio dos anos 50. Era cantor de moda o Alberto Ribeiro, que foi protagonista com Amália Rodrigues no filme “Capas Negras”. Aquela voz partia os corações mais empedernidos das moçoilas. «Coimbra é uma lição de fado e tradição» e o trinar da guitarra arrastava multidões para junto das telefonias. A televisão ainda não tinha chegado. Mas o gosto de me divertir pelo carnaval, esse, tinha-me chegado desde pequeno.
Que havia nesses tempos para a juventude? Enumero o que não havia e já me basta.
Não havia droga, não havia bares nocturnos para a juventude se perder, não havia tantos subornos, assassinatos, roubos de automóveis (também não havia carros, como agora), assaltos de rua e tantos impunes. Como tenho saudades desses tempos, presumivelmente é por isso que recordo aqui esta passagem carnavalesca.
No sitio onde nasci e vivi até aos 30 anos, existia um grupo de 14 rapazes todos amigos e conhecidos dos tempos da instrução primária. Uns cujos seus pais tinham posses e outros não tanto, mas amigos do coração. Poderíamos mesmo chamar a esse grupo os 14 mosqueteiros, porque o lema era um por todos e todos por um.
Entre eles não posso esquecer o Matias, porque além de não ter pai e mãe desde pequenito, vivendo portanto um mês em casa de cada irmão e com dificuldades financeiras de tal ordem que o impossibilitava de nos acompanhar, nunca deixou de o fazer, porque os gastos que lhe seriam atribuídos eram liquidados por todo o restante do grupo.
Tinha ainda a agravante de ser extremamente míope e gago. Os seus óculos pareciam o fundo de um copo de “três” daqueles das antigas tabernas.
Quando as suas cangalhas (óculos) de plástico e a que se chamava de tartaruga se partiam, era uma delícia apreciar o Matias sem ver e a gaguejar (era um espectáculo).
A maioria tocava “banjo” e um tocava viola, enquanto os outros com caixas de costura da Singer (as meninas iam tirar o corte àquela empresa), com garrafas de vinho do Porto dentro, faziam uma orquestra de primeiríssima qualidade.
O Alberto Ribeiro organizou uma festa de carnaval nas Belas Artes, em Lisboa, e como aliciante tinha também os palhaços do Coliseu.
Comprámos bilhetes, subimos a avenida da Liberdade a pé e, quando chegámos á esquina com a Barata Salgueiro, metemo-nos em três taxis e mandámos avançar para as Belas Artes. Os motoristas ainda perguntaram por que não íamos a pé, sendo-lhes respondido que assim a nossa chegada tinha mais impacto. O porteiro de sobretudo verde e galões amarelos abre-nos a porta e nem sequer nos pediu os bilhetes da nossa mesa e de entrada, julgando que nós éramos os palhaços do Coliseu. Quando nos viram entrar, a orquestra parou à espera da nossa actuação.
Dirigimo-nos à nossa mesa, colocámos em cima dela um tacho de alumínio cheio de lamejinhas (moluscos bivalves, que especialmente se criam nos estuários dos rios Tejo, Sado e Arade, em Portimão) feitas a preceito pela mãe do Albano no fogareiro a petróleo do meu conto “O Hipólito, Castanhas e o Tinto de 3 de Novembro de 2008”, acompanhadas com Vinho do Porto e espumante tendo até o cantor da moda vindo degustar da nossa especialidade.
Foi uma noite de glória para “Os Lacinhos” (nome do grupo) e uma noite de partir o “coco” para os outros presentes.
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14.4.09

A Loja do Cidadão


Um Instituto qualquer coisa para a Modernização resolveu proibir, na loja do Cidadão, inaugurada na Cidade que se passeia permanentemente no focinhos dos cães, o uso pelas nossas beldades, ali em serviço, de mini-saia, roupa interior preta, usar decotes, saltos altos, perfumes agressivos e não recordo se mais alguma coisa.
O referido Instituto não é dirigido por gente moderna, porque se o fosse nunca se atreveriam a dar tamanho conselho ao pessoal que vai trabalhar naquele lugar.
Numa época em que é tão vulgar aparecerem anúncios nos jornais a oferecer empregos, desde que os atributos sejam uso de mini-saia, decotes de maneira a ver-se o «piercing» no umbigo, usar saltos altos de forma a mostrar uma perna bem formosa e torneada, perfumes das melhores marcas francesas, esta notícia deixou-me preocupado.
A Loja do Cidadão, como o seu nome indica é para uso exclusivo do Cidadão e o tal Instituto impõe-se anunciando estas barbaridades. Está mais do que provado que existem neste País cidadãos de primeira e de segunda. Os de primeira, os privilegiados, dão-se ao luxo de colocar anúncios como atrás descrevo, e os de segunda, só as vêem já com a farda vestida e deprimidos por aquela proibição
Ao ser atendido naquela loja, o Cidadão, o público ainda tem de estar atento e jogar na defensivo, pois o Instituto ainda admite que possa ser atingido com um perfume agressivo.
Vai um simples homem, já tão preocupado com a falta, por exemplo, de um emprego e acaba por ser agredido com um perfume nas trombas que o deixa prostrado sem possibilidade de ser socorrido pelo INEM, pois segundo consta pelo Algarve as ambulâncias também estão pela hora da morte.
Pobre cidadão de Portugal! Tu, que sempre foste um tristonho, sem alegria pela vida, depois de ultimamente desfazerem o que restava deste canto e até a igreja há tantos anos acompanhar a missa com acordes de rock, não podes ter o prazer, o sublime gosto de apreciar aquilo que Deus fez com tanto carinho e amor. Um decote bem rasgado, uma perna linda, a que uns sapatos altos tanto favorece, uma mini-saia que te encha o olho, uma roupa interior mais sedutora e por último um perfume que te livre dos cheiros desagradáveis que fede por tudo quanto é sitio.

Ao cidadão o que é do cidadão.
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30.3.09

O Enfermeiro “Marmelada”

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Era velho, simpático, falador e trocista. O Zé trabalhou num escritório de uma empresa 16 anos, entre 50/66, ano em que foi inaugurada a ponte Salazar, hoje com outro nome.
Nessa empresa, trabalhava por conta de uma segurada o enfermeiro a quem todos chamavam “Marmelada”, mas cujo nome era Silva. Portanto já estão a imaginar que o tratamento era assim: Cara a cara, Sr. Silva para a direita, Sr. Silva para a esquerda e pela porta baixa; ó “Marmelada”, fazendo com que afinasse 30 vezes por dia. A sua arma e como vingança, era colocar alcunhas a todos que lhe chamavam “Marmelada”.
Na conformidade, não havia ninguém na empresa que não tivesse alcunha. Era “Olho de Boi, Borda de Água, Cartucheira, Esparguete, Pica Bois, Chanfrado, etc., etc., etc.”
O seu vencimento era fraquito, mas lá ia dando para viver. Quando fazia anos, normalmente de minha iniciativa fazíamos uma pedinchinha e arranjávamos sempre uns “tustos” para lhe comprar um casaco, camisa, gravata, que com pompa e circunstância levávamos a sua casa, onde vivia só, pois não tinha companheira.
O petisco fazia-o ele no seu gabinete de trabalho e era dia de festa quando a malta o convidava para almoçar.
Um dia, num estabelecimento de vende tudo (os únicos chineses que havia por cá, só vendiam gravatas pelas ruas enfiadas num pau) comprou um fogareiro a petróleo, daqueles que já fiz referencia num outro conto denominado “O Hipólito”, com intuito de fazer a comida mais rapidamente.
Chegou ao trabalho feliz, contente e demonstrava a sua satisfação pela compra que tinha feito.
Acontece que o diabo (Zé) estava sempre à coca, na esperança de aproveitar um deslize do “Marmelada” para lhe fazer uma partida. Mas naquele dia o homem, ou por defesa ou porque notou também a minha satisfação pela sua compra, resolveu quando saía fechar a porta à chave e levar a chave no bolso. As suas saídas eram de pouca duração e limitavam-se as umas voltitas pelas oficinas. Mas numa das suas curtas saídas à casa de banho, o Zé, de corrida veloz, foi-se ao “Hipólito” e esvaziou o petróleo substituindo-o por água.
Quando o Marmelada se preparava para fazer ou aquecer o almoço, por mais que desse à bomba, o “Hipólito” não trabalhava. Até que, já farto de aquecer a cabeça do fogão começou com os seus impropérios contra o tendeiro que lhe vendeu a pequena máquina. O encarregado da oficina de serralharia, desconfiado, visto que conhecia o Zé e do que ele era capaz, abriu a válvula, cheirou e deu o remate final: Sr. Silva, o que está aqui dentro é água.
Como eu parava sempre por perto para me deliciar com as malandrices, o “Marmelada” olhou para mim e desabafou em voz alta.
Filho da puta de “Esparguete” (era esta a alcunha com que ele me tinha baptizado), se um dia te pego nem sabes o que te faço.
A gargalhada que se seguia acalmava o “engatado” e a partir daí o Zé estava pronto para outra.
Noutro dia pela manhã, e após o “Marmelada” ter feito uma cafeteira de café com que aquecia o seu estômago em dias de frio, o Zé, apanhando-o distraído encheu-lhe a cafeteira de serradura. Quando se preparava para beber a “mistela”, reconhecia que mais uma vez tinha caído na esparrela.
Isto foi somente uma pequena amostra das partidas que lhe fiz. Foram tantas, tantas e tão variadas, que de algumas agora até sinto remorsos.
Todavia, garanto-vos não havia ninguém que fosse mais seu amigo do que eu, mas quando eu estava por perto, o “Marmelada” sentia-se estranho, era como se visse o diabo em figura de gente.
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16.3.09

João Pião

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O Zé tinha 7/8 anos e já nessa altura tinha ferrado no corpo o gosto pela partidas e a vontade de brincar. Algumas delas já foram aqui contadas, outras, se a memória não me falhar e tiverem paciência para aturar os meus devaneios, continuarei aqui a descrevê-las.
O meu avô era homem do campo. Tinha várias quintas, dedicando-se por isso à lavoura. A minha avó, segundo a minha óptica, era a máquina de ter filhos.
Naquele tempo apenas existiam umas charruas rudimentares, puxadas por mulas para mexer a terra e a mão-de-obra disputava-se entre os agricultores. Portanto, dono de terras com mulher saudável e fértil, era certo e sabido que… era casa cheia de catraios.
Na casa dos meus avós paternos, não foram nada comedidos e foram pais somente de… 18!
Participo-lhes desde já que não bateram o recorde, pois os meus avós maternos tiveram de dar comer a 19. Eram outros tempos, é verdade, mas sempre foram outros tempos para tudo.
Tive necessidade de dar esta explicação prévia, dado que a história se vai desenrolar numa das quintas do meu avô, com um filho de um dos seus trabalhadores.
Tiago foi contratado para trabalhar de sol a sol, como cavador. Era homem corpulento e mestre na arte de mexer a enxada. Praticamente levava todos os dias o seu filho (de nome Pião e da mesma idade que eu) lá para a quinta, com a obrigação de pôr comida nas manjedoiras dos animais. Como não eram poucos, tinha muito que fazer, dando-lhe eu muitas vezes ajuda, para mais depressa ficar livre e darmos asas às nossas brincadeiras.
Comia comigo e minha avó, na cozinha grande, e no fim de cada semana o meu avó dava-lhe uns “tustos”, que seriam depois religiosamente entregues à sua mãe.
Nunca soube se Pião era mesmo nome da família ou se era alcunha. Todavia, confirmo que pela sua ligeireza, vivacidade e esperteza, o moço era um autêntico pião. Calçado, nunca tinha entrado nos seus pés, tão-pouco alguma vez ouvi qualquer lamúria ou queixa por esse facto. Montava o jerico com destreza e que sempre acariciou desde que começou a ir lá para a quinta. O asno estava na flor da idade e o João Pião era o único que o montava, coisa que fazia com máximo dos prazeres. Bastava bater com os seus calcanhares descalços na barriga do animal e este seguia indolente, devagar, devagarinho a caminho do local habitual e seu conhecido. Nunca o vi correr e mesmo assim nunca tive tentação de o montar. Quantas o vezes o Pião júnior me convidou e aliciou para eu ir com ele, para imitarmos os cowboys.
Um dia, o meu avô foi ao mercado à Moita do Ribatejo e trouxe umas botas pequenas, com cardas, para oferecer ao Pião. Que contente estava ele! Correu campo fora com elas na mão, para mostrar a seu pai a oferta que o patrão Manel lhe tinha oferecido. Minha avô, chamou-o e, mandando-o lavar os pés, deu-lhe uma peúgas minhas para completar a satisfação do petiz, pois era oportunidade de se estrear as botas imediatamente.
Enquanto o nosso Pião lavou os pés e calçou as meias, eu, na arrecadação da quinta brinquei com as botas.
Poucos minutos depois, aí estava o João Pião, qual “toutinegra” correndo campo fora com as botas nos pés.
Chegou a hora de montar o burro, para fazer a sua costumada e maçadora viagem. O Pião salta-lhe para cima, com a língua dá aquele estalinho característico ao animal para se pôr em marcha, bate-lhe com os calcanhares das botas na barriga e… pasmem-se!
O burro indolente, preguiçoso no andar, desata a correr em tal velocidade, que nada o fazia parar. O Pião bem o mandava parar, batia com a língua, acariciava-lhe a barriga com os calcanhares das botas, mas qual quê, quanto mais lhe batia com as botas mais corria e até dava coices à mistura, nada fazendo prever quando pararia. Não fosse ele tão especialista na arte de montar e seria cuspido de cima do animal. Acho que a correria só parou quando, ao passar junto a uns fardos de feno, o Pião resolveu atirar-se do burro abaixo. Estavam todos na quinta boquiabertos a apreciaram esta corrida do “Porsche de Orelhas” e admirados com tal façanha. Um animal tão dócil, tão meigo e faz-lhe uma partida daquelas!
O Pião, com os pés em brasa, pois como contei era primeira vez que se tinha calçado, resolveu tirar as botas dos pés. Sentou-se e, ao pôr a mão atrás no calcanhar para as descalçar, picou uma das mãos, ficando a saber nessa ocasião por que motivo a velocidade do burro tinha sido aquela, e creio até ser capaz de fazer concorrência com o Alfa Pendular.
É que, enquanto o João Pião lavou os pés e calçou as meias, eu preguei em cada bota um prego de sapateiro, para servir de esporas quando montasse o burro.
Claro que não esperava que o animal voasse como um “cavalo alado”, mas ao ver a aflição do Pião e aquela correria desenfreada, achei por bem dar corda aos meus sapatos e dar o salto para junto da minha protectora (mãe Júlia), que estava numa das outras quintas ali perto.
O meu avô bem me procurou, pois queria dar-me o correctivo em presença dos assistentes da corrida do fórmula “B”, só que o Zé fintou-o e teve uns largos dias sem lhe aparecer.
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2.3.09

Saramago - Carpinteiro

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Em 1976, o Zé trabalhava numa empresa cujos armazéns se situavam no local onde mais tarde se realizou a Expo 98, tendo por isso desaparecido.
Em seu redor havia mais armazéns e num deles estava instalada uma carpintaria, tendo sido aí que conheci o João Saramago, homem já bem idoso com experiência de vida bem vivida, mas cuja estrelinha da sorte nunca lhe bateu à porta.
Artífice de primeira, na arte de entalhar. Sempre bem disposto, mesmo quando as adversidades lhe batiam à porta. Nunca soube ao certo o local da sua residência, já que tão depressa dizia que morava numa barraca no Vale de Santo António, como num apartamento com todos os requisitos modernos nas Olaias, com cores berrantes “tipo Taveira” (este Taveira… também saiu um passarão…).
Admito que não falava verdade, inclinando-me mais para a primeira, pois o Saramago tinha sempre um sorriso maroto quando falava no “albergue”.
Certo dia entra-me porta dentro e contou-me que tinha respondido a um anúncio de convívio e tinha tomado a liberdade de dar o número de telefone do meu escritório…
Estava aflito e esperava uma reacção minha pela negativa. Coitado do Saramago, não conhecia o meu coração e do que o Zé seria capaz. Pu-lo à vontade e prontifiquei-me para dar toda a colaboração no arranjinho. Não queria que a sua Filomena soubesse de nada, mas reconhecia que estava a meter-se em entalanço; para que queria ele um encosto se se mijava todo, confessou-me, dando uma valente gargalhada, pois sofria de incontinência.
Talvez ela fosse rica e então queria lá saber da Filomena para alguma coisa; já lhe tinha aturado tantas, que ao menos assim deixava-a livre até ao fim da vida.
Eu delirava com os seus comentários e combinamos que se a senhora do anúncio lhe telefonasse e ele não estivesse, eu atenderia, aldrabava como podia e logo se veria onde paravam as modas.
Selamos o acordo com um aperto de mão e a promessa de um almoço bem regado, num restaurante rasca, junto ao mercado da 24 de Julho, nesta linda cidade de Lisboa.
Três ou quatro dias depois o Saramago estava triste, pesaroso e enfadonho. Segundo ele, a senhora pendurou a carta que ele lhe escreveu, num arame que algumas famílias usam na casa de banho e cujo destino todos sabemos qual é.
Que não, que tenha paciência, porque decerto a senhora deve estar a fazer uma selecção e só depois disso entrará em contacto consigo, alvitrei eu já a matutar na partida que se ia seguir.
Primeiro, entro em contacto com uma colega que trabalhava nos nossos escritórios da Praça da Alegria, precisamente por cima do Maxime. Conto-lhe a história e peço a sua colaboração, para falar com o Saramago. A seguir, digo a este que uma senhora, mulher talvez aí de 55/60 anos, bem vestida com um grande casacão de peles, tinha estado ali no escritório a perguntar por ele, dizendo que falaria amanhã por voltas das 16 horas, pois desejava conhecê-lo.
Naquela ocasião confirmei que na realidade todos nós somos duas vezes crianças e o Saramago estava tão, mas tão contente, que o mijo lhe corria pernas abaixo sem ele dar por isso. E no outro dia, pela hora aprazada, lá recebe um telefonema, cheio de melaço e promessas para se conhecerem pessoalmente.
Perguntei-lhe onde levaria a senhora a almoçar. Respondeu-me: sei lá, tomara eu ter dinheiro para mim. Fiz-lhe ver que ela deveria estar acostumada a frequentar o Tavares Rico e que ele tinha de ir bem arranjado e engravatado para fazer boa figura.
Chegou o dia… Encontro o Saramago à porta da casa da Sorte no Rossio. Diz em casa, à Filomena, que vai a um funeral de um amigo, para justificar a necessidade de vestir o melhor fatinho que tinha; põe gravata preta, metendo às escondidas outra mais garrida dentro do bolso.
Passa pelo escritório para eu confirmar se estava no «´sconforme», muda de gravata e alvitrei que uma flor na lapela era coisa indispensável.
Fiz de seu motorista e fomos à Praça da Alegria, para que a minha colega o conhecesse; regou-o com perfume, no sentido até de disfarçar o cheiro que andava sempre atrás dele fruto da sua incontinência.
Partimo-nos a rir e pretendi acabar ali mesmo com a “cegada”, mas a minha colega lembrou-me que não seria oportuno.
Chovia copiosamente, mas o Saramago estava com pedalada invulgar e em vez de ficar à esquina da porta na Casa da Sorte (casa que vende lotaria), meteu-se dentro duma barraca das obras que a Carris estava a fazer mesmo ali em frente, e diz-me assim:
- Vamos lá ver qual vai ser a minha sorte, ao menos que me saia a aproximação.
Coitado do Saramago! Bem podia esperar sentado. Lá se foi a ilusão de mudar de vida e a Filomena teve de o aturar até ao resto dos seus dias.
Não tive coragem para lhe contar que tinha sido uma partida.
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16.2.09

O LEITEIRO

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No passado sábado, comemorou-se o dia dos namorados.
Este é o meu contributo.
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Conheci a “nena” à porta do cine-teatro Éden, na praça dos Restauradores. Esperávamos que a bilheteira abrisse. O filme, já não recordo o nome, era em 3 dimensões.
Uma novidade que segundo diziam vinha revolucionar o cinema. As filas eram enormes e comprava-se o bilhete com antecedência. Comprei lugar de plateia e constatei que a menina ficaria ao meu lado se tivesse adquirido para o mesmo dia.
Sorte dela, sorte minha? Foi tiro na muge.
No Sábado seguinte, às 15,30 da tarde, lá estávamos lado a lado cada um na sua poltrona, de óculos na mão à espera do início da sessão.
O Zé nunca foi coxo para iniciar uma conversação. Cumprimentei-a com a vénia que se impunha e memorizei a sua blusa decotada. A saia da época, abaixo do joelho. A mini ainda não tinha aparecido (tenho pena).
Reparei que os seus óculos destinados a ver a película tremiam na sua mão, tendo perguntado se estava nervosa. Respondeu que tinha receio de se assustar com o desenrolar da “faena”.
Bela entrada (digo agora)! Tentei acalmá-la, acrescentado que estava ao seu lado e a protegeria se algo de mal sucedesse. A partir daqui, já sabem como é, palavra puxa palavra e a porta escancarou-se para estarmos à vontade e divagarmos sobre qualquer assunto…
Os meus temas estavam sempre actualizados. Não eram muito variados e a tecla era sempre a mesma. Se namorava, se… e se…e a resposta foi «NÃO». Como é evidente fiquei mais à vontade, preparei o carreto, enrolei a linha, pus a minhoca no anzol, tomei balanço e lancei a cana. Agora era uma questão de ter paciência para ver se o peixe picava e se eu tinha músculo, capacidade e imaginação para o puxar para cima sem o deixar fugir.
Com o desenrolar do filme, que não era de terror mas tinha bonitos efeitos especiais, íamos trocando impressões sobre o mesmo e tocávamos no braço ou do outro, alargando os nossos laços de confiança. Acabada a sessão, acompanhei-a a pé até ao bairro dos actores, onde morada, ali bem ao lado da Alameda D. Afonso Henriques.
Passámos a trocar telefonemas e iniciando o Zé mais uma aventura amorosa, que nessa altura, com 23 anos, a contagem já prosseguia a bom ritmo.
Às quintas-feiras, os nossos encontros eram no Jardim Constantino. Aos sábados batia-mos os cinemas Rex, Capitólio, Odeon, Condes (no fundo como calhava em função dos filmes) e aos domingos Jardim Zoológico, Estufa Fria ou Jardim da Estrela. Era assim passado o nosso idílio, com as semanas a correr vertiginosamente e sem os seus pais terem conhecimento dele.
Estávamos mo Inverno e quando trocávamos telefonemas, que ela fazia sempre com pressa para não aumentar a conta telefónica de casa, deu-me conhecimento de que os progenitores, ele polícia de costumes (aí engoli em seco) e ela doméstica, saíam no próximo sábado logo pela manhã para assistir ao carnaval de Torres Vedras, voltando já noite alta e que seria uma boa oportunidade para eu a visitar pela primeira vez na sua casa.
Fiquei nas nuvens e as marteladas na minha cabeça a lembrar-me a toda a hora aquele acontecimento não me deixavam um momento sossegado.
Levantei-me “temperano”, merecendo por isso um reparo da mãe Júlia, que deveria estar algum burro para morrer por me levantar tão cedo.
Depois de ter feito um telefonema (confirmação para saber se o caminho estava desimpedido), comprei numa pastelaria meia dúzia de pasteis de nata (ainda hoje sou doido por eles) e avancei, qual tropa de elite a caminho do Kosovo.
Fui recebido à porta, com abraços, beijos e sei lá que mais. Ficou impressionada com a minha lembrança e ofereceu-me um chá.
E pela primeira vez na minha vida almocei em casa de jantar alheia, com a maior despreocupação do mundo e sem que os donos da dita tivessem conhecimento, com a mesa decorada a preceito. A queridinha arranjou um petisco que nunca tinha provado (repolho com salsicha, daquelas grandes, compradas avulso). Não devia ter jeito para a culinária.
Comi. Não me soube mal nem bem, mas disse que estava divinal. Todavia, tinha imaginado que a comida daquele dia, tão especial, iria ser febras.
E foram tantas as mesuras e as delicadezas, que o amor começou a derreter-se, acabando por nos deitarmos ao cair da noite em cima da sua cama, vestidos, tendo tirado somente os sapatos e o casaco.
Conversamos, fizemos juras ao futuro e, numa audácia incontrolável, puxei as calças para baixo. Nesse preciso instante tocam a campainha insistentemente.
Pulámos da cama, puxo as calças para cima sem apertar os botões (e penso: é o polícia, estou lixado), calço os sapatos deixando os atacadores pendurados, visto o casaco só com uma mão, dado que a outra segurava as calças, coloco a gabardina de fazenda debaixo do braço, olho para a “nena” que me pega num braço e me levou para a copa.
Dá-me este recado (isto tudo em velocidade mais rápida do que o TVG) eu vou ver quem é, se for alguém para entrar abres esta porta e sais por aí.
Enquanto oiço os seus passos no corredor a caminho da porta de entrada, encontrava-me ainda no estado como atrás descrevi. Vejo que a porta tinha um fecho de correr em cima e outro em baixo, ambos fechados, bem como a fechadura, esta, a duas voltas.
Tudo me vem à ideia: como consigo fazer isto em tão curto espaço de tempo e como vou para a rua neste estado.
A campainha não para de tocar, ouço a Joana a dar as voltas na fechadura e, na porta que eu tinha à disposição para me pirar (nem ainda hoje sei onde é que ia dar), ouço do lado de for um tilintar, batem à porta com força e anunciam: LEITEIRO…
O tilintar era as medidas de alumínio presas com uma corrente a baterem na bilha.
Digo-vos de verdade: as tripas deram-me uma volta, senti uma vontade enorme e tive a sensação de que me ia cagar todo.
A Joana esclarece a pessoa que tocava, que desculpasse mas tinha de atender o leiteiro, fecha a porta e corre trocando comigo de posição.
Aperaltei-me, abotoei as calças, os sapatos, o casaco, vesti a gabardina e de despedida devo ter dado o beijo mais frio da minha vida.
Cheguei à rua e senti-me feliz ao receber o frio gelado do mês de Fevereiro…
Safei-me de boa…e o namoro tinha acabado na hora, no minuto, no segundo, em que o meu calcanhar do pé que ficou atrás, saiu a porta principal da Joana.
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