A caravana de Camionetas, automoveis e toda aquela enormidade de gente apareciam de rompante na minha aldeia. A "maltinha", largava a bola de trapo com que se entretinha, o ranho largava a ponta do nariz e colava-se nas bochechas secando com a corrida desenfreada, cujo destino era o local onde o Circo iria montar a grande tenda, cujo tecto era em cone e as chapas de zinco onduladas a fazer uma grande circunferência, marcavam o seu espaço. A ansiedade era enorme e todos queriam saber quando era a inauguração, se tinha tigres, leões, ursos e a desilusão era enorme quando ficávamos a saber que aquele só tinha como astro principal um simples asno.
Ainda não se tinha iniciado a sua montagem e já os cartazes eram distribuídos pelos locais do costume anunciando a boa nova. O Circo estava de volta...
Residindo o Zé a 11 escassos km de Lisboa, era quase uma aventura, uma simples deslocação à Capital do Império, que como sabem começava em Lisboa, corria veloz sobre o Atlântico em visita ao Brasil, regressava, corria toda a costa de África, contornava o cabo das Tormentas, entrava no Indico, dava um pulo a Índia e a Malaca, assentava uma pata em Macau e finalmente mergulhava nos Mares de Timor.
Meu avô usando carroça e burro, transportava os produtos das suas propriedades até Cacilhas, usava o barco para a travessia do Tejo e tinha local no mercado da Ribeira. Não o mercado da Avenida 24 de Julho, a que todos agora chamam de Mercado da Ribeiro, mas sim aquele instalado na cais da autentica ribeira do Tejo. ali paredes meias com o Cais do Sodré. Ali sim, inventaram e serviam o Cacau da Ribeira. Esse mercado começava a trabalhar pelas 24 horas e era aí que os aldeões comercializavam os seus produtos das hortas e pomares, e que depois eram distribuídos por todos os mercados da capital onde a população se abastecia. O Capital, nesta altura, virou tudo de pantanas, liquidou os mercados típicos da nossa Cidade sendo substituídos pelo Continente, Pingo Doce, Modelo, Lidl etc. Ai... quem me dera ver outra vez o Mercado da Praça da Figueira, o seu movimento, os bailes de Santo António que se faziam lá dentro. Já imaginaram o que era Cacilhas, nesse tempo? A quantidade de estábulos que era necessário para guardar os burros que todos os dias transportavam as mercadorias para abastecer Lisboa? Daí meus amigos, o baptismo popular atribuído. "CACILHAS TERRA DOS BURROS". Mais tarde esses estábulos serviram para guardar bicicletas, dado trabalhadores dos docas, da Carris e outras grandes industrias instaladas em Lisboa, usarem aquele transporte na deslocação para a labuta do pão de cada dia.
Chegada a noite de estreia, algumas das vezes o Zé não conseguia ter as boas graças da mãe Júlia e não conseguia as moedas suficientes para um lugar na geral. Restava-lhe andar já com o espectáculo a correr, espreitar pelos buracos das chapas de zinco, para segundo a sua óptica, ter o legitimo direito de assistir ao trabalho dos palhaços e dar uma saudáveis gargalhadas que lhe proporcionariam uma dormida descansado e um sonho feliz.
Raramente conseguíamos ver alguma coisa, a não ser a curva das pernas de algumas mulheres sentadas nas estruturas das bancadas de madeira. Perna vista, e era certo e sabido que pelo buraco da chapa de zinco, metia-se o pipo de uma bisnaga grande de borracha, comprada na farmácia para lavar ouvidos que cheia de água era despejada e cujo destino eram as pernas que acabávamos de ver. O espectáculo parava, e as "raposas" (serventes do circo) acompanhados da GNR davam voltas e reviravoltas para ver se apanhavam os energúmenos, que se atreviam a perturbar o espectáculo circense. Claro, tínhamos dado à sola e nunca ninguém foi apanhado. Frente ás bilheteiras era colocada uma vara e lá em cima colocavam uma lâmpada de grande potencia para iluminar toda aquela zona, mas uma esguichadela dada pela bisnaga, contribuía para tudo ficar ás escuras, pois a água fria em contacto com o vidro quentíssimo, rebentava a lâmpada.
Então o "manager", nos dias imediatos deixava a pequenada entrar gratuitamente com a recomendação de não fazerem tropelias e não inventarem coisas piores que poderiam fazer largos estragos.
Tudo está mudado,desapareceram os saltimbancos, a "maltinha" já tem o nariz limpo, as brincadeiras bem como o circo já não são o que eram...