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Quem era o Filipe “Ranhoso”? E porque lhe chamavam “Ranhoso”?
Julgo que por esta razão: ouvia dizer que era empregado fabril, mas nunca soube onde trabalhava, vendendo nas horas vagas relógios, canivetes, isqueiros e bugigangas das mais variadas, parecendo assim uma loja dos trezentos ambulante. Já perceberam que o “Ranhoso” não possuía local fixo para vender os artigos, nem ninguém sabia também onde os ia adquirir e, se o alcunharam de “Ranhoso”, devia ser pelo facto de só vender uma ranhozices, mas que faziam as delicias dos compradores e dos que assistiam ao negócio.
Além do mais, a fala do “Ranhoso” era um tanto ou quanto trapalhona e por vezes difícil de perceber. Eu, sinceramente, sentia muitas dificuldades em o entender e às vezes perguntava ao vizinho do lado, como se ele fosse o meu tradutor; todavia dava-me gozo ouvi-lo a explicar a utilidade dos coisas que vendia.
Pelo Natal, as famílias juntam-se e eu, para não fugir à regra, também seguia essa tradição. Habitualmente a noite de Natal é friorenta, cai chuva de molha tolos, está nevoeiro, os pais aproveitam para confirmar aos seus rebentos que o tempo está a adivinhar a chegada do Pai Natal e consequentemente amanhã haverá prenda no seu sapatinho.
Naquela noite, enquanto minha mãe fazia filhós e outras doçarias, e por essas terras do nosso País se assistia à missa do Galo, eu e mais meia dúzia de amigos fomos fazer uma visita à colectividade local, praticamente vazia, estando os dois directores de serviço ansiosos pela saída dos retardatários a fim de fecharem o “estaminé”, pois decerto também quereriam ir para o seio familiar.
A faltar aí 15 ou 20 minutos para a meia noite, aparece o “Ranhoso” com o que lhe restava das entregas feitas naquele fim de dia e há muito encomendadas, para fazer felizes, na manhã do outro dia, os premiados pela visita do Pai Natal, encaminhando-se apressadamente para os sanitários.
Assim que o vimos chegar, preparamo-nos para fazer um pouco de sala e mirar o que ele desta vez trazia.
As retretes daquela colectividade não tinham sanitas, em virtude de ser daquelas que têm um buraco e um local próprio para colocar os pés.
Neste entretanto, a luz eléctrica apagou-se e o “Ranhoso” desata lá de dentro a protestar sem possibilidade de lhe podermos acudir, visto ser um corte geral na povoação. Ele não se calava e todos, que não seriam mais do que 9 ou 10, fomos até aos sanitários. Um dos meus amigos tira do bolso um isqueiro, acende-o e vimos que a coisa estava torta: o “Ranhoso” com o cu à mostra e com uma mão a segurar as calças pelo meio das pernas protestava e apontava para o buraco onde tinha acabado de fazer a sua necessidade fisiológica. Assim que se apanhou com luz, o “Ranhoso” ajoelha-se como se estivesse a fazer penitência, mete o braço por ali abaixo perante a perplexidade dos presentes, enquanto o que tinha o isqueiro na mão queimava o dedos e apagava-o. O Ranhoso levanta-se e, com a sua voz atabalhoada, pede por favor para o acenderem novamente e Deus fez-lhe a vontade, reacendendo-se novamente a luz eléctrica.
E então, para nossa plena satisfação, a cena repete-se com o “Ranhoso” a meter novamente a mão até lá bem em baixo, para pegar...(?) era uma incógnita.
Finalmente, os dedos lá pegam o procurado e o homem levanta-se feliz e contente trazendo uma pistola da marca Star 6,35, sua propriedade, que tinha dentro duma bolsa de cabedal pendurada no sinto das calças e que, ao desapertar o cinto e faltando-lhe a luz, o “Ranhoso” deixou cair no buraco fazendo-lhe a “larada” por cima.
Com todos os assistentes a rir, olho para pistola que mais parecia uma pistola de chocolate, fazendo-me imediatamente lembrar aquelas com que eu quando miúdo brincam no dia de Natal e a comia aos bocados, começando sempre pelo cano e vimos o “Ranhoso”, ainda com as calças na mesma posição, lavar a pistola debaixo da torneira do lavatório; e como o cano daquela estava entupido com matéria estranha ao seu funcionamento, a água quando lá chegou fez ricochete, deixando os óculos e a sua cara a necessitarem de uma desinfecção urgente.
O Pai Natal atarefado a fazer a distribuição dos “presentes” pelo mundo cristão, e talvez aborrecido com a concorrência desleal que o “Ranhoso” lhe fazia, não quis perder a oportunidade de lhe pregar esta partida. Acredito que não se terá apercebido de que o “Ranhoso” estava em apuros e que não seria a altura mais indicada para lhe dar a prenda, até porque ali não existia chaminé nem o sapato engraxado para o efeito.
Os Directores de serviço naquela noite, o “Ranhoso” e os nove ou dez assistentes a esta cena de Noite de Natal e simultaneamente Carnaval da Vida, foram durante muitos meses assunto de conversa na minha aldeia.