20.3.11

O Internamento


O Zé nunca esteve doente, o Zé poucas vezes foi atacado por uma pequena tosse e o Zé que tem médicos por perto, gosta de falar com eles, qualquer assunto desde que não seja sobre doenças.
Todavia, o Zé já esteve internado seis dias no Hospital de Santa Maria em Lisboa e com perspectivas de necessitar de uma operação que a efectuar-se seria de urgência.
Por volta dos anos 60, o homem saudável que sempre tinha sido, sentiu uma dor acima virilha esquerda e não ligou ao assunto. Pior do que a cantiga do Fernando Nascimento "Ela não voltou" do primeiro festival da canção exibido pela televisão portuguesa.
Mas aquela dor repetia, era aguda e recorri ao Prof Dr. Carlos Ribeiro, conhecido cardiologista que chegou a ser bastonário da Ordem dos Médicos, e era seu vizinho.
Diagnosticou os malefícios do apêndice e portanto era necessário retirar o referido.
No outro dia deu entrada numa das enfermarias do Hospital Escolar da nossa Capital e já acima referido. Pedia a todos os Santos, aos Médicos e sabe lá a quem mais para diligenciarem um tratamento em vez de corte por bisturi.
Naquela época ser vizinho e conhecido de tão ilustre Médico era uma dádiva de Deus e Deus colaborou com o Zé, já que,só lhe faltava a auréola para ser Santo. E portanto a equipa médica daquele serviço, mandou iniciar um tratamento.
E assim, de manhã e à noite, o Zé apanhava nas "bochechas do Traseiro" injecções. Os dias iam passando, a sua saúde de ferro estava a recompor-se e ao quinto dia, quando a enfermeira fazendo a sua rotina entra na enfermaria para distribuir os tratamentos pelos internados, aproxima-se do Zé, que fazendo já tudo em automatismo destapa o "sim senhor" colocando-o bem a jeito da profissional de saúde. Esta sorri e disse assim, "Estranha maneira de tomar comprimidos". As injecções tinham terminado na véspera e foram substituídas por comprimidos. Como nunca me faltou boa disposição, dei uma sonora gargalhada.
Depois foi só esperar pelos resultados de análises e o Zé saiu pelo seu próprio pé e ainda hoje sou portador do apêndice que se encontra desde aquela data quietinho e a dormir sossegado, não tendo nunca mais dado qualquer sinal de se sentir incomodado.

3.3.11

O Sábado Gordo


Corso carnavalesco nos anos 50. Na época presente pode ver-se igualzinho na Capital Caramela.

O carnaval aproxima-se do seu fim e o Zé folgazão, adorando esta época não podia deixar de recordar os carnavais no Coliseu dos Recreios.

No princípio dos anos cinquenta, o Zé e o seu amigo Albano, companheiro de várias aventuras, já vosso conhecido resolveram fardar-se a preceito e ir uma noite ao Coliseu dos Recreios, em Lisboa, ainda na altura, Capital do Império Luso.

Começamos por comprar um bilhete para “Geral Reservada”, o que quer dizer “bilhete de pontapé nas costas”, mas sob reserva sempre era outra coisa. Para entenderem, o Zé vai explicar. O Coliseu dos Recreios situado na Baixa de Lisboa, era e é, uma grande sala de espectáculos extremamente versátil. Ali podem ocorrer, sessões de cinema, teatro, circo, bailes, congressos, comícios; enfim, um não mais acabar de eventos. Desde plateia, poltronas, frisas, camarotes, “geral reservada” e culminando na “geral simples”, todas escalonados por andares e preços, sendo estes em pé no último piso e a “reservada” praticamente ao nível do rés do chão um pouco mais cara, mas de bancada, e daí o termo “Bilhete de pontapé nas costas”.

O seu interior era bonito e agora depois de recuperado mais bonito está. Todavia, no presente, os eventos que arrastam multidões resumem-se a uns grupos de 5 ou 6 moços a que chamam banda e que tocam instrumentos musicais que nos dão cabo dos tímpanos.

Na época de Carnaval o espectáculo era sempre circo. A malta sentava-se, assistia ao circo e nos intervalos uma orquestra animava os bailes, que decorriam na pista e nos inúmeros corredores dos vários pisos.

Para manter a ordem havia polícia por todo o lado, que dois dias antes tinham estreado farda nova. Acho até que toda a instituição estava orgulhosa pelo aparato que faziam e garbosamente ostentavam.

No sábado a anteceder o Domingo gordo, era a nossa grande noite, com o baile trapalhão.

Previamente preparamo-nos para o ataque ao Carnaval do Coliseu dos Recreios. Arranjamos uma caixa de cartão que tinha servido para empacotar uma telefonia da marca “Telefunkem”, fomos à mercearia de um comum amigo e fizemos o abastecimento para o bombardeamento do nosso Carnaval. (era habito na época, levar uns saquitos pequenos cheios de serradura, para atirar ás “donzelas”). Pedimos a um amigo tendeiro, 2 guarda-pós, que eram usados pelos droguistas e merceeiros, optando por uns que tivessem sido usados toda a semana. Eram duma beleza assustadora, acastanhados, marcas no peito fruto do merceeiro limpar ali as suas mãos, na barriga restos de sabão amarelo que ficavam quando com uma faca cortava as barras do dito.

Colocamos na caixa, 1 Kg de batatas pequenas já semi-podres, 3 litros de milho, 2 de feijão manteiga, uma dúzia de cebolas também já em estado de decomposição, uma dúzia de pacotes de 125 gramas com pó de sapato (pó muito fino e escuro que entra na composição da graxa, e se emprega no fabrico de lápis para desenho) e 8 sardinhas amarelas de barrica. Deixamos de parte uns ovos, porque ainda não tinham “Pinto” e tivemos medo que se partissem no caminho. Colocamos um cordel com varias voltas à caixa, um bocadito de trapo para não aleijar as mãos, e…

Fomos à Adega do meu progenitor e mascaramo-nos com fatos que nunca tinha servido para tal. Calças e casacos que pela época das vindimas serviam para os trabalhadores levarem as uvas aos lagares e cujo mosto os punha quando secos tesos como pau, e a terminar o chapéu onde na cabeça assentavam as selhas de madeira, igualmente cheios de mosto. Por cima da farpela vestimos os guarda-pós e às 20 e 30 horas, estávamos com o nosso farnel à porta do Coliseu esperando na bicha para entrarmos. Em correria apressada tratamos de arranjar um bom lugar, colocando a caixa debaixo das nossas pernas e acertando as miras dos canhões para o fogo serrado que se iria seguir.

Coliseu cheio, à pinha, de outra forma, como sardinha em lata. O espectáculo iria começar, os holofotes esperavam tremelicando a entrada dos artistas e nós em desassossego íamos esperando. Há hora prevista, tocaram as trombetas e o circo entra em movimento... Existem sempre fracções de tempo que tudo fica às escuras e era precisamente aí que os nossos canhões abriam a sessão de ataque.

Os primeiros acordes foram acompanhados com uma saraivada de batatas, lançadas para a direita e esquerda e quando as luzes acendiam novamente, tratávamos de aplaudir, batendo palmas a confirmar o sucesso da artista e das suas plumas em cima de um cavalo. Sentados apreciávamos os primeiros estragos. Um senhor limpava a banda do casaco, tentando descobrir de onde teria partido aquele obus; no lado contrário uma senhora tinha o seu carrapito em desalinho, e outro cavalheiro limpava as patilhas do cabelo, onde tinha aterrado uma pasta de batata depois de ter feito ricochete em qualquer lado. Para começar não estava mal, comentavam os francos atiradores. Trocamos impressões para acertar se continuávamos com “batatame” ou se alterávamos para cebola, de maneira a não deixar esturrar o refugado. A partir daí e enquanto não fosse esgotado este tipo de mantimentos mantínhamos esta maneira de atacar, fazendo uns ou outros salpicos de milho e feijão para distrair os inimigos. A coisa não corria mal e o nosso exercito quase inçava e desfraldava a bandeira vitoriosa, quando nos passou pela cabeça lançar uns petardos de efeito mais desastroso. Pegamos cada um num pacotinho de pó de sapato e achamos que o deveríamos primeiro picar com um alfinete, como na cozinha as nossas mães faziam aos chouriços, para quando chegassem ao seu destino, ao baterem desfazerem-se imediatamente. À falta de alfinete, fizemo-lo com um canivete, o que alterou imediatamente os seus efeitos. Em vez de buraquitos, ficaram uns “buracões” e portanto o alcance em distância já não era tanto, dado aquele material bélico ir a esvaziar pelo caminho. Através das luzes, víamos aquele pó finíssimo pairando no ar. As nossas mãos ficaram completamente pretas e portanto se fossemos apanhados dificilmente teríamos condições para negar que não éramos os agressores incógnitos. Nos arremessos imediatos, desfizemo-nos destes petardos e ao abrirem de novo as luzes da ribalta, sentíamo-nos seguros, colocamos as mãos nos bolsos para as esconder e apreciávamos a continuação do movimento carnavalesco, que diga-se estava no auge. O pior, meus amigos, é que deitando sacos de pó de sapato já rotos a eito e em força, houve o infeliz azar de pregar com um deles nos queixos de um polícia. Nós notamos um movimento desusado na força policial, não sabíamos é que a coisa seria tão preta. (aliás era bem visível nas trombas do agente da ordem e na sua farda, o preto do pó de sapato) Os olhos dos militares percorriam incessantemente pela “geral reservada” como se fossem holofotes de grande alcance a procurar aviões invasores prontos a despejar metralha sobre aquela população indefesa. Os nossos fatos despertavam atenção pela originalidade negativa e portanto os nossos corações começaram a bater numa cavalgada desenfreada. Somos caçados, dizia o Albano, calma, dizia eu, mas mais aflito ainda. Até que, prevendo que a coisa poderia ser mais torta, resolvemos ir aos corredores e aos “banheiros” deitar fora as sardinhas amarelas de barrica, na esperança de que com a continuação do espectáculo a policia se acalmasse.



A animação nos corredores e na pista, era assim.

Levanta-mo-nos e descemos a bancada, levando cada um, 4 peixes embrulhados em papel pardo. Ao passar pelo primeiro policia que encontramos o Albano é interceptado por um “bófia”. A minha cara deveria ter ficado da cor de um pimento vermelho e vi-me imediatamente dentro de uma cela, numa das esquadras desta cidade que amo. O Albano, além de todo o material que levávamos e como reforço, ainda tinha um saco enorme cheio de serradura, preso por um grande cordel, de forma a dar com ele na cabeça de alguém e puxava imediatamente pelo cordel para o recuperar.

(era como a história do Solnado, na guerra de 1908). Afinal para nossa tranquilidade, foi essa arma que o polícia apreendeu sem ver nem perguntar o que levávamos no embrulho onde estavam sardinhas a que o sal já tinha comido os olhos. Os urinóis dos homens, não era mais do que uns canos galvanizados a deitarem água para uma parede e onde cada “indígena” fazia as suas necessidades mictórias contra a referida. Aquela cena, também é digna de uma referência especial, já que, a multidão a “mijar” contra a parede, vistos por detrás pareciam os Judeus na Terra Santa no momento das suas orações, só lhes faltavam os rabichos. Fingindo que estávamos a vazar a “bexiga” atiramos junto á parede duas sardinhas por cima dos indivíduos que estavam ao nosso lado. Uma delas, fazendo um voo perfeito devia ter caído sobre uma mão que segurava o “penduricalho” enquanto fazia o seu “xixi”. Olá!!, disse alguém. Ora aqui está uma brincadeira bonita!!. A vontade de rir enchera as nossas bochechas. Pois meus amigos, dentro de pouco tempo, até na pista dos artistas caíram sardinhas e juro, não fomos nós que as atiramos.

O nosso stock já se limitava a milho e feijão, e sentíamo-nos receosos e talvez por receio, parecia-nos que a polícia nos tinha debaixo de olho. Num dos intervalos quisemos arranjar par para dançar. Mas quem dançava com mascarados com tão estranha indumentária e as mãos negras a lembrar um natural de S. Tomé e Príncipe?

Pelas 4 da manhã, saímos extenuados e já sem a caixa de cartão, caminhamos até ao Cais do Sodré, batendo o queixo com frio por falta de abafos que nos defendessem do mês de Fevereiro, para apanhar o primeiro barco da travessia do Tejo.

Moral desta história verídica. Em todas as épocas houve meninos bonzinhos que por isto ou aquilo, às vezes subiam-lhe a negra à cabeça e eram tão traquinas como os piores.

Espero encontrar o Albano num futuro próximo no além e que já esteja bem orientado para podermos iniciar novamente s nossas partidas carnavalescas.