17.2.10

Vão rareando estes amigos

Dois mil e dois, numa manhã de Dezembro em que o frio já nos apertava, pego na lista telefónica à procura de um número. Enganei-me e abri a de Castelo branco, numa página do concelho de Idanha a Nova.
No meu cérebro, as campainhas tocaram todas a trazer-me à memória o meu grande amigo Cabral, que já não via há mais de cinquenta e sabia residir por ali. Desfolhei e encontrei o seu nome, liguei e uma vozinha meiga cheia de juventude pergunta quem fala e o que queria. Perguntei pelo Sr. Cabral e recebi como resposta que estava, e que aquela dona da voz era sua filha. Disse-lhe que era amigo do pai, que não lhe dissesse, mas que lhe pretendia falar.
O Cabral dá as primeiras palavras e reconheci-o imediatamente. Quis fazer mistério, sem lhe dizer quem era e perguntei se tinha morada no mesmo local onde nasci. Que sim, e insiste em saber com quem falava. Perguntei se conheceu, daquela localidade, Miguel, Chico, Covas e ele continuou a enumerar mais amigos comuns. De seguida pergunto-lhe se conhecia o Guilherme, respondendo-me que sim, que era o irmão do melhor amigo da sua vida e diz o meu nome completo. As lágrimas bailaram-me pelos olhos e correram de seguida pela minha cara abaixo. O amigo que eu não via há cinquenta anos diz-me, sem saber com quem falava, que eu era o maior amigo da sua vida.
Anunciei-lhe que era eu e aí é ele que chora de alegria. O que fazia, porque não nos víamos e convida-me para o visitar. Quinze dias depois, acompanhado de outro amigo comum, que foi de propósito ter comigo ao Norte, entro na sua pequena propriedade agrícola, sendo recebido pela sua mulher e filha, esclarecendo-me que o marido tinha uma fábrica de estores e tinha ido a Castelo Branco fazer uma montagem e estaria a chegar. A Lurdes, sua mulher, eu já a tinha conhecido da última vez que nos vimos, ainda nem sequer namoravam. Entretanto o Cabral chega. Que abraço meu Deus, que felicidade ambos gozamos, que alegria ambos sentimos! O Amora partilhou dos mesmos sentimentos. Perguntei-lhe pelo pessoal que o teria acompanhado na montagem dos estores e respondeu-me que não tinha qualquer empregado. Mas então a fábrica…
Mostrou-ma e fiquei espantando quando, no seu interior, vi a pender do tecto cordas, cordéis, tirantes e esticadores, que ele sozinho manejava com destreza, fazendo subir e descer os estores na sua fabricação. Um autêntico filme cómico que tinha visto em tempos, em que o seu actor principal era o italiano Tótó.
Foi uma tarde completa a reviver os nossos tempos de rapaz.
A noite aproximava-se e pedi-lhe para nos indicar onde podíamos pernoitar, tendo feito questão de ser na sua casa. Como recusámos, pôs-nos a faca ao peito e dá a sua sentença. Vocês vêem e se não gostarem não ficam. Dito assim, não há maneira de fazer uma negativa e fomos deitar-nos no sótão, que era grande e tinha umas quatro ou cinco camas. O frio era de rachar e o tecto não tinha forro. Valeu-nos a cama ser de cotão. Dentro de uma mesa-de-cabeceira existia um penico verde de plástico, onde eu e o Amora urinámos. Pela manhã, abri uma pequena janela e joguei aquele liquido janela fora, pois não queria que a Lurdes tivesse aquele trabalho. Um cão ganiu, espreitei e apercebi-me que o desgraçado tinha apanhado o primeiro banho matinal.
Vestimo-nos e, já no rés-do-chão, fui à casa de banho onde molhei ao mesmo tempo os cantos dos olhos com a ponta dos meus dois dedos indicadores.
Meses depois assisti já com a minha “Dona” ao casamento da sua filha e vi a felicidade que o Cabral e a sua mulher tiveram naquele dia.
Imediatamente a seguir caiu doente. Visitei-o mais duas vezes. Na primeira colaborei com sua mulher, levando no meu carro mais 5 amigos comuns para poder matar saudades. A outra foi para o acompanhar à última morada.
A partir do nosso encontro, de homem saudável passou a moribundo e assim perdi aquele que me considerava o melhor amigo da sua vida.
Oportunamente irei contar as minhas férias com ele, cinquenta anos antes, e a partida que um galo me fez.
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1.2.10

VERGONHA E ORGULHO

O moço estudou, foi bom aluno, entrou na Faculdade e, sem nunca ter deixado nada para trás, tirou o curso de Medicina com 18 valores. Seguiram-se alguns anos de preparação e finalmente, por sua livre vontade, escolheu a especialidade de Medicina Familiar.
Aí, começou a vida de saltimbanco com colocações em vários locais do país, sem nunca ter instalado consultório, já que entende que a saúde da população portuguesa é obrigação do Estado.
Assentou arraiais em Bragança, onde iniciou a actividade a sério pela primeira vez, razão porque tive conhecimento da minha história de 03/X/07, “consulta em Bragança”.
Depois, andou ao sabor das necessidades e finalmente foi parar a um concelho do distrito de Porto. Foi-lhe entregue uma lista de utentes a rondar os 1.900, vestiu a bata e diariamente exerce a profissão com o brio profissional que todos lhe reconhecem.
Todos os dias, dentro das paredes do Centro de Saúde acontecem cenas, umas de arrepiar os cabelos a um careca e outras nem tanto, mas que a serem descritas enchiam algumas salas da Torre do Tombo.
Depois de terminar as consultas no Centro, seguem-se as dos domicílios. Umas vezes, os doentes ou pseudo doentes não estão em casa, outras é um cão que no quintal lhe rasga as calças e ainda existem aquelas que, por mais que procurem, não encontram a morada que lhe foi dada.
Atribulações que servem depois, entre colegas, para dar umas risadas no outro dia.
A Teresa Afonso, residente num dos bairros que o conhecido ex-militante do PSD, Valentim Loureiro, entregou à gente pobre daquele concelho, requisitou através de telefone a presença do médico de família, pois encontrava-se doente e de cama.
Ele já a conhecia, pois a senhora já o tinha visitado três ou quatro vezes e sabia que a senhora mancava da perna esquerda.
Chegou ao local e, não encontra a rua, sente-se perdido e resolve perguntar a duas prováveis vizinhas, onde era a rua tal e se conheciam a D. Teresa Afonso. Sim, sim, claro, a rua era mesmo aquela onde estavam. Agora a D. Teresa Afonso não sabiam quem era e não devia morar ali, pois elas conheciam toda a gente do bairro. Pelo sim, pelo não, perguntam a uma terceira e como o médico faz a referência de que a senhora era alta e coxa, acendeu-se-lhes a luz e confirmaram imediatamente que era a Teresa do “mija”.
Seu pai já tinha falecido, mas com a idade e doença estava incontinente, pelo que andava sempre com as calças molhadas, ocasionando que o povo o alcunhasse de “mija”.
Sua filha sentia-se triste por esse facto e tinha vergonha de dizer que era a filha do “mija”.
O médico lá cumpriu com a sua obrigação…
Dias depois, o médico dá consulta a outra utente, senhora mais expedita e desembaraçada nas conversas, que aproveitou para marcar consulta em domicílio para a sua sogra, que viva na sua casa.
Como o médico lhe perguntou se era fácil encontrar a morada, a senhora, com o ar mais natural deste mundo, com os olhos a flamejar e irradiar felicidade, explica ao médico que é extremamente fácil e não tem nada que saber. Basta perguntar a qualquer pessoa dali, onde mora o caga-euros, que toda a gente conhece.
Moral de história: Enquanto uma sente vergonha por ser filha do “mija” a outra sente orgulho por ser a esposa do caga-euros.
Contrastes da sociedade em que vivemos…
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