19.5.09

O gato da vizinha



Que saudades tenho dos tempos em que era criança. Que saudades dos tempos em que não me ralava com nada. A única preocupação que tinha era inventar alguma coisa para brincar e ter companhia para essas brincadeiras.
O tempo das alpercatas com sola de corda, da bola de borracha, da de couro com uma bexiga de porco lá dentro e aquela deixava de ser redonda.
Do tempo em que o vinho era comprado em garrafas que levávamos às tabernas e trazíamos a quantidade que queríamos, consoante o dinheiro disponível.
Nesta altura tudo é diferente e até o vinho já nos aparece em casa, trazido por um carro cheio de publicidade a várias marcas do precioso “néctar”, comprado através da net.
Os recipientes de vidro com a continuação de meter vinho lá dentro, vinho que saía do tonel ou do barril, sem passar pelas maquinas depuradoras como existe agora, criava como é evidente uma sujidade na base interior junto ao rebordo.
Claro que era preciso de quando em quando fazer a sua limpeza, usando as pessoas as mais variadas imaginações para conseguir os seus intentos.
Uns colocavam areia lá dentro com água e agitavam, outros usavam sal e alguns até chumbos de cartuchos de caça. No fundo, o que se pretendia era a sua limpeza.
O António Catarino, nome da personagem deste conto, não fugia à regra e primava pela limpeza da sua “botelha”, fazendo mesmo alarde de quando ia à adega de meu pai, a sua ser a mais limpa, a que mais reluzia.
Era caçador e portanto tinha à mão os chumbos milagrosos com que mantinha a sua muito mais limpa do que a dos outros.
Certa vez, passou uma boa hora a fazer a limpeza semanal e quando o vidro estava límpido, transparente, dirigiu-se à adega que era bem perto da sua casa, não tendo reparado que ficaram lá dentro algumas bolinhas de chumbo, tendo mandado encher o garrafão com cinco litros do tinto.
Já noite, jantou, “mamou” uma quantidade do copos que fazia parte da sua satisfação plena e duas ou três horas depois sentiu-se mal, sentindo a cabeça a andar de roda as pernas sem poderem com o peso do corpo.
Atribuiu aquela má disposição ao vinho bebido e, portanto, tratou de procurar a casa de meu pai para lhe dar conta da sua insatisfação pelo vinho que tinha levado.
Toca o badalo do portão, o meu pai descansava no primeiro andar da habitação e o Catarino desata a chamar com voz bem alta.
Sr.Antonio, Sr.António, chamou em voz alta. Foi ouvido e reconhecido. O António salta da cama abre uma das janelas da casa e perguntou. Catarino, que queres tu a estas horas?
- Sr. António, o que é que você pôs no vinho hoje?
- Nada Catarino, que havia de lhe pôr?
- Pôs, sim senhor, pôs alguma coisa. Diga lá o que é que pôs.
Não estando para aturar bebedeiras, o António, meio aborrecido, visto ter reparado que ele estava com grão na asa, perguntou:
- Catarino, qual a razão porque dizes isso?
- Sr. António, depois de beber, senti-me mal, vim à rua, dei um «pum» e matei o gato da vizinha.
Pobre Catarino, que o seu “Deus” o tenha em bom descanso, porque mesmo bêbado humor não lhe faltava.
Tinham-lhe contado aquela anedota e como usava chumbos para limpar as suas garrafas quis ao vivo brincar com o meu pai.
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4.5.09

Carnaval nas Belas Artes


O Zé com o seu grupo “Os Lacinhos” no Carnaval das Belas Artes


Fui sempre um entusiasta pelo carnaval. Tinha parceiros fixos e habituais para brincadeiras carnavalescas. Quando chegava a época, o Zé e os seus pares escolhiam um local de diversão e partíamos de abalada para uma noite de rebentar o balão.
O traje era o de ocasião, conforme o local e a “faena”. Ficar a ver passar o Carnaval ao meu lado sem procurar fazer parte não era coisa para o meu feitio.
O ano já não recordo, sei que já passou muito tempo, talvez no princípio dos anos 50. Era cantor de moda o Alberto Ribeiro, que foi protagonista com Amália Rodrigues no filme “Capas Negras”. Aquela voz partia os corações mais empedernidos das moçoilas. «Coimbra é uma lição de fado e tradição» e o trinar da guitarra arrastava multidões para junto das telefonias. A televisão ainda não tinha chegado. Mas o gosto de me divertir pelo carnaval, esse, tinha-me chegado desde pequeno.
Que havia nesses tempos para a juventude? Enumero o que não havia e já me basta.
Não havia droga, não havia bares nocturnos para a juventude se perder, não havia tantos subornos, assassinatos, roubos de automóveis (também não havia carros, como agora), assaltos de rua e tantos impunes. Como tenho saudades desses tempos, presumivelmente é por isso que recordo aqui esta passagem carnavalesca.
No sitio onde nasci e vivi até aos 30 anos, existia um grupo de 14 rapazes todos amigos e conhecidos dos tempos da instrução primária. Uns cujos seus pais tinham posses e outros não tanto, mas amigos do coração. Poderíamos mesmo chamar a esse grupo os 14 mosqueteiros, porque o lema era um por todos e todos por um.
Entre eles não posso esquecer o Matias, porque além de não ter pai e mãe desde pequenito, vivendo portanto um mês em casa de cada irmão e com dificuldades financeiras de tal ordem que o impossibilitava de nos acompanhar, nunca deixou de o fazer, porque os gastos que lhe seriam atribuídos eram liquidados por todo o restante do grupo.
Tinha ainda a agravante de ser extremamente míope e gago. Os seus óculos pareciam o fundo de um copo de “três” daqueles das antigas tabernas.
Quando as suas cangalhas (óculos) de plástico e a que se chamava de tartaruga se partiam, era uma delícia apreciar o Matias sem ver e a gaguejar (era um espectáculo).
A maioria tocava “banjo” e um tocava viola, enquanto os outros com caixas de costura da Singer (as meninas iam tirar o corte àquela empresa), com garrafas de vinho do Porto dentro, faziam uma orquestra de primeiríssima qualidade.
O Alberto Ribeiro organizou uma festa de carnaval nas Belas Artes, em Lisboa, e como aliciante tinha também os palhaços do Coliseu.
Comprámos bilhetes, subimos a avenida da Liberdade a pé e, quando chegámos á esquina com a Barata Salgueiro, metemo-nos em três taxis e mandámos avançar para as Belas Artes. Os motoristas ainda perguntaram por que não íamos a pé, sendo-lhes respondido que assim a nossa chegada tinha mais impacto. O porteiro de sobretudo verde e galões amarelos abre-nos a porta e nem sequer nos pediu os bilhetes da nossa mesa e de entrada, julgando que nós éramos os palhaços do Coliseu. Quando nos viram entrar, a orquestra parou à espera da nossa actuação.
Dirigimo-nos à nossa mesa, colocámos em cima dela um tacho de alumínio cheio de lamejinhas (moluscos bivalves, que especialmente se criam nos estuários dos rios Tejo, Sado e Arade, em Portimão) feitas a preceito pela mãe do Albano no fogareiro a petróleo do meu conto “O Hipólito, Castanhas e o Tinto de 3 de Novembro de 2008”, acompanhadas com Vinho do Porto e espumante tendo até o cantor da moda vindo degustar da nossa especialidade.
Foi uma noite de glória para “Os Lacinhos” (nome do grupo) e uma noite de partir o “coco” para os outros presentes.
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