18.11.08

“Ai no me lo diga!”

(Caravela que habitualmente ornamenta a entrada do recinto da feira)


Nas minhas andanças por terras de Espanha, conheci um casal de Huelva, gente simpatiquíssima que vivia juntamente com uns tios já maiores, que tinham uma pequena mercearia de bairro. Os tios eram de Burriana, da Província de Castellon, comunidade Valenciana e desde que partiram à procura de melhor vida, nunca mais visitaram a terra natal.
A D. Carmen, nome da tia, tinha um horror às estradas, aos automóveis, aos comboios, tendo chegado a pensar que ela tinha medo de tudo quanto mexesse. Portanto, pouco saía de casa, a não ser para ajudar o marido na sua loja. Os sobrinhos, ele, Juan e ela, Maruga, esperavam ansiosos a visita da cegonha.
Certa ocasião, visitei-os aquando da realização das festas Columbinas, que se realizam na primeira semana de Agosto em honra de Cristovão Colombo, pois foi daquela Cidade espanhola, que partiu, à descoberta do novo mundo.
O Juan, Maruga, eu e a minha companheira Lurdocas que já foi interveniente no meu conto da atribulada “Viagem a Sevilha”, fomos ao teatro ver uma peça cómica, num desmontável sito no recinto das festas. Havia um artista que, por tudo e por nada, dizia esta frase: “Ai no me lo diga!”. Frase que pegou no nosso vocabulário e passamos também por tudo e por nada a dizer : “Ai no me lo diga!”.
Falando, em sua casa, das grutas de Aracena, que tínhamos visitado aquando da deslocação a Sevilha de tão boa ou má memória, a D. Carmen disse que nunca tinha visitado umas grutas e eu propus-me imediatamente a levá-la para ver aquelas, satisfazendo assim o seu desejo.
Que não, que tinha muito medo da estrada, mas, com paciência, lá a convencemos e, no outro dia, munidos de um piquenique, lá partimos no Fiat 500, subindo a serra de Rio Tinto a caminho das grutas, ficando o marido em casa entregue ao pequeno comércio.
Dado que a D. Carmen era dos “pesos pesados”, ia ao meu lado, sendo notório o “stress” que a senhora passava pelo medo que tinha. As conversas desenrolavam-se e, de quando em quando, lá ia “Ai no me lo diga!”. Parámos para petiscar e não levávamos nada fresco. “Ai no me lo diga!”. Nas curvas, nas grutas “Ai no me lo diga!”, que medo a senhora tinha e por que pressão estava aquele anjo sénior a passar.
Quando saímos das grutas já era noite, sentámo-nos numa esplanada, comemos qualquer coisa e começámos a viagem de regresso. Aí, a senhora confessa que estava com um medo de morrer, ao fazer a viagem de noite em plena serra. Claro que… “Ai no me lo diga!”.
Ocupámos os mesmos lugares na viatura e, quando estávamos a meio caminho, a D. Cármen, que ainda não tinha aberto a boca, demonstrou que estava atrapalhada e queria vomitar. A Lurdocas, para animar a malta, diz assim: “Ai no me lo diga!”. Eu paro o carro e, quando me debruço para tentar abrir a porta do seu lado, saiu pela boca da D. Carmen uma descarga que bateu no vidro e fez ricochete, ficando o raio da velha e eu em mísero estado. “Ai no me lo diga!”, diz o Juan. Entretanto, já tinha sido aberta a porta e ela, coitada, envergonhada, limpava-se com um pano, quando lhe dá vontade para segunda convulsão, debruçando-se ainda mais, para fazer directamente para o chão, ficando com o traseiro espetado e virado para mim e enquanto descarregava pela boca, dá um pum...mas um pum tão grande, tão grande, que se eu não tivesse a porta do meu lado fechada, saía disparado para a arcem (valeta) do outro lado da carretera e a protecção civil chamada para me socorrer, teria de me apanhar aos bocados.
A sua sobrinha diz assim: “Ai no me lo diga!”. Toda a gente queria rir, toda a gente se conteve, e à minha pergunta de se encontrar mais aliviada, respondeu. “Que vergoenza, que vergoenza”.
A partir daí, aquela viagem de regresso mais parecia um velório do que um passeio.
Com os meus botões, pensava: se ela se caga outra vez, temos caldo entornado.
Quando chegámos a Huelva, já noite dentro, ainda apalpei o meu braço direito, para ver se não estaria deslocado, porque um torpedo daquela envergadura tem efeitos devastadores, que o digam os militares americanos em missão no Iraque.
No outro dia, quando partimos rumo à capital portuguesa, toda a gente veio despedir-se de nós, excepto a D. Carmen que, por se ter esvaziado como uma boneca insuflada, não se aguentava de pé.
Para desanuviar o ambiente, quando os visitei novamente fiz a entrega de um macaco de cerâmica a subir uma corda, que me disseram nas Caldas de Rainha (vejam lá onde fui arranjar aquela obra) ser o macaco do azar, esclarecendo eu aos amigos de Huelva que se tratava do macaco da sorte.
O “mono” foi imediatamente pendurado na loja, para dar sorte, e, quando mais tarde voltei, vi aquela encerrada, as ervas já altas à entrada da porta e fiquei preocupado, julgando ter contribuído para a falência do comércio de ultramarinos que era a sua subsistência. Eis que veio ao meu encontro o amigo tendeiro e a sua amada Carmen dar-me um abraço bem forte, pois o macaco lhes tinha dado tanta sorte que se viram obrigado a mudar de local, para aumentar o negócio.
Confirmei que afinal estas coisas de macacos de sorte ou azar não passam de mito. A sorrir e ao ouvido dele e sem que a Carmen ouvisse, disse baixinho: “Ai não me lo diga!”

3.11.08

O Hipólito, Castanhas e o Tinto





Aproxima-se o S. Martinho, já faltam poucos dias para o dia 11 de Novembro.
Esta história passa-se em 1947 e o Zé ainda não tinha ido a Oeiras à Inspecção militar.
Não sei como, mas recebi um postal com uma vista de Zaragoza, convidando-me a entrar num jogo, enviando para o primeiro nome de uma lista de quatro ou seis lá inscritos com respectivas moradas, um postal da cidade onde morava ou era natural, eliminando a seguir aquele para onde escrevia e colocando o meu e respectiva morada no último lugar, remetendo para 6 amigos que por sua vez enviavam para outros, fazendo todos a inclusão do seu nome em último lugar em substituição dos que iam suprimindo.
Se não houvesse quebra no jogo, receberia umas centenas de postais num curto espaço de tempo. Calhou-me enviar um desses postais postal para uma moça de Zaragoza, residente no Bairro de Santa Isabel, nome alusivo em homenagem à nossa Rainha Santa, natural de Aragon, cuja Zaragoza é sua capital.
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- Na mesma época, o Albano, protagonista do conto “O Celular”, meu companheiro inseparável vivia em Amora, com seus pais, numa pequena casa de rés-do-chão.
O gás de bilhas ainda não tinha chegado às casas portuguesas e portanto a comida era feita em fogareiro a carvão ou a petróleo, este da marca Hipólito, construído por empresa do mesmo nome localizada em Torres Vedras.
Era bonito o fogão, amarelo, que as donas de casa punham a brilhar com “solarire”.
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A chaminé da casa do Albano tinha uma bancada feita em placa de cimento, onde era colocado o Hipólito, e na frente da dita chaminé colocavam uma cortina, para dar um ar mais gracioso à cozinha.
Ao lado da chaminé existia uma pia de pedra com buraquinhos que servia para deitar restos de comida, esta também tapada com uma cortina perfeitamente igual à da chaminé e que não era mais do que a sua continuação.
O Albano fazia anos dentro desta data e portanto, com um grupo de amigos, resolvemos comemorar os seus anos e o S. Martinho em simultâneo. A comida foi ao gosto de todos, línguas de bacalhau, batatas couves, azeite, pimenta, alho e como complemento castanhas assadas e cozidas. O vinho era bom (sabíamos lá nós, pequenos fedelhos, sem experiência nenhuma na arte de apreciá-lo, o que era bom ou mau) e o certo é que o Zé e o Albano, depois do repasto e a hora tardia, sentimos necessidade de curtir uma piela tamanha (primeira e última que o Zé teve na vida) na cama do Albano, onde dormimos os dois com foguetes, morteiros e bombinhas de carnaval à mistura, pondo a casa dos seus pais em alvoroço, já que agoniados e com o peso da “bilis” tivemos de dar algumas descargas ao mar.
Com a cabeça à roda, o estômago pesado, agoniado, salto da cama sem acender a luz e dirijo-me à cozinha, afasto a cortina da pia, quase meti a cabeça lá dentro e aqui vai obra. Que alivio… não sei se cheguei a dormir, mas às sete da manhã, a mãe do Albano levantou-se para tratar do pequeno-almoço para o marido, que ia trabalhar para uma fábrica de cortiça que havia na povoação.
Desata a gritar com o filho (eu era visita, escapava), ralhando porque o Hipólito estava em mísero estado, com toda a descarga que eu lhe tinha feito em cima. É que enganei-me e, em vez de afastar a cortina da pia, afastei a da chaminé e despejei-lhe para cima.
Que horror, que vergonha senti naquela ocasião. Andei uns dias que nem passava à porta daquela casa, onde fui sempre tão bem recebido. O Albano lá desbravou terreno e mais tarde, coitados, perdoaram-me o caso.
Entretanto, recebo resposta de Zaragoza, já acompanhada de fotografias da beldade Aragoneza, iniciando assim um namoro à distância de 1.000 Km., destinado ao fracasso. O Albano também arranjou borracho, mas desistiu pouco tempo depois, tendo eu alimentado sonhos, até que fui à terra dos “manhos” (naturais de Zaragoza) conhecê-la. Fui recebido com pompa, e estou convencido que toda a malta do bairro quis conhecer a ave rara, acabada de cair de pára-quedas nas terras de Alfonso I, o Batalhador, sendo muito bem recebido sempre que me deslocava lá, tendo ela retribuído com 4 ou 5 visitas à capital portuguesa.
Estávamos anos sem nos escrever e de repente iniciávamos o que nunca devíamos ter começado. Em Outubro de 2006, fui com o Albano até Barcelona ver a réplica da caravela Santa Maria (ahahah…) e no regresso, quando passávamos em Zaragoza, vinha com ele a recordar a historia do “hipolito”, quando alvitra para irmos visitar a “manha”, tendo eu anuído.
Comentei com ele que devia ir acompanhado de uma tortas para lhe adoçar a boca, respondeu-me: “vamos lá ver se não vens de lá todo torto, com uma arrochadas pelas costas abaixo”…
Bati à porta, abriu-a, cumprimentei-a e não respondeu, olhou para mim e bateu-me com a porta na cara. A caminho de Madrid, muito o Albano se riu e gozou à minha custa.
Dias depois, o Albano, o meu amigo companheiro de tantos e tantos momentos da minha vida, deixou o nosso planeta. Fiz a promessa de por estas datas fazer-lhe uma visita, trocarmos impressões, lembrar as nossas aventuras, até ao dia que me vá juntar a ele.