23.11.07

O celular

.
Ao iniciar este conto, devo esclarecer os que dedicam algum tempo à sua leitura, que o Albano (nome verdadeiro) foi o melhor amigo que tive na vida, foi aquele com quem tive passagens inesquecíveis. De linguagem fácil e com permanente dose de humor, fazia de nós uma parelha inseparável.
Era o amigo que todos gostariam de ter pela vida fora e aqui para nós, podem crer, que falta me faz este AMIGO.
Este conto não é mais do que uma homenagem que lhe pretendo prestar, pelo seu falecimento em Novembro de 2006, vítima de ser fumador. Doença terrível e de grande sofrimento.
Eu era mais velho do que ele 5 anos, conheci-o quando tinha 14 e fui eu que lhe arranjei o seu primeiro emprego.
Fruto daquela doença, em fases agudas esteve no último ano da sua vida internado várias vezes em Hospital e numa delas passou-se este caso.
Contrariando as normas hospitalares, ele conseguia levar o telemóvel lá para dentro, para não se sentir tão só. O aparelho era grande mas gostava dele porque telefonava, era a sua função e isso já o deixava satisfeito.
Numa das vezes, ao receber uma chamada de alguém amigo mas que desconhecia o seu internamento, participou-lhe que estava no hospital a fazer uns exames. Como a pessoa estranhou o facto, ele rematou a conversa desta maneira.
Sim, sim, com tantos exames, quando sair daqui já sou médico”. Por esta tirada já podem imaginar quão bem disposto era o Albano.
Pela experiência de outras vezes em que esteve internado, sabia que não podia levar carteira, dinheiro, telemóvel etc. Sempre que chegava a altura de entregar os seus pertences, lamuriava-se pelo facto de não poder levar o celular. De uma delas não se lamuriou e foi a própria empregada a chamar-lhe a atenção, pela sua compreensão ao não se fazer acompanhar de tal objecto. Mal sabia ela que ele o levava escondido entre as cuecas e no conforto das suas partes mais intimas. Como estava muito debilitado, foi uma enfermeira que lhe deu banho, contra a feroz resistência do Albano.
A enfermeira, brasileira, com aquele sotaque característico do seu país, insiste, ele continua a não querer, ela já farta e querendo despachar-se, já que outros pacientes aguardavam a sua vez, deita-lhe as mãos às cuecas para o despir e nesse momento exacto o telemóvel começa a tocar a “banda”, o seu toque preferido, perante a admiração da enfermeira, pois não esperava, num hospital, dentro da casa de banho e já com a água quente, ouvir uma melodia do Xico Buarque seu conterrâneo, a surdir de tão estranho sitio.
Os tomates do Albano, já de si murchos da doença e da guerra aberta com a brasileira, mirraram ainda mais e o telemóvel caiu no chão feito em cacos, não havendo portanto possibilidade de saber quem o queria contactar.
Lá tomou o seu banhinho, com a enfermeira de quando em quando a desatar a rir por tão estranha e insólita ocorrência.
No outro dia, como habitual, apareci para o visitar e ao cruzar-me com a enfermeira que já me conhecia como visita do internado, das outras inúmeras vezes que lá fui, cumprimenta-me e diz assim, voltando as costas e seguindo de imediato o seu caminho.
O seu amigo fala pra Pinto”. Como sei o que quer dizer pinto em brasileiro, percebi imediatamente que algo raro se teria passado.
Com muita dificuldade ao falar, com a graça que punha nas suas conversas, lá me contou toda aquela cena e que a enfermeira devia estar admirada do volume que tinha entre as pernas e que o mais engraçado tinha sido quando o gajo começou a tocar, mas que depois lhe tinha lavado as “peles” com muito ternura, talvez ao recordar-se de algum carnaval da Baía lá no seu Brasil distante.
Esquecendo o seu padecimento deu uma gargalhada, que lhe causou um ataque de tosse e houve necessidade de lhe colocar oxigénio.

13.11.07

A minha parvoíce

Hoje levantei-me mais cedo porque tinha de cumprir um compromisso com o meu irmão e deslocar-me a Braga com ele. De um tiro matava alguns coelhos (visitava os meus dois filhos, a residirem naquela cidade), comprava umas castanhas oriundas de Carrazeda de Ansiães e acamaradava-mos, coisa rara entre nós.
No percurso para o ponto de encontro e numa das paragens de semáforo, meteram-me no banco do carro o jornal “Global”, que se publica todos os dias úteis e é distribuído gratuitamente.
Quando cheguei, já tarde, o irmão já tinha partido com o filho e só entrei em contacto como ele através do telemóvel, já a circularem em plena Ponte Vasco da Gama.
Tudo bem. Parece afinal que houve engano ou confusão entre nós na marcação da hora, coisa que não será estranha, já que ambos temos uma idade de criar bicho.
Voltei de rabinho alçado para casa e à falta do melhor entretive-me a ler o referido jornal.
Na primeira página, em letras garrafais, tomava-se conhecimento de que havia nova polémica sobre o aeroporto, envolvendo o Ministro das Obras Públicas. É que aquele insiste que ele deve ser construído na Ota e a Confederação da Industria Portuguesa em Alcochete (em pleno deserto).Para mim e para a maioria dos portugueses, tanto se nos dá que o façam na Ota, em Alcochete ou na cabeça de um careca. Se fizerem na cabeça de um careca, será um aeroporto móvel e portanto dessa maneira é capaz de contentar todas as autarquias que tanto lutam para que se faça no seu concelho. O único problema que é capaz de existir é não haver uma cabeça grande e careca ali à mão, e portanto a escolha torna-se complicada. Haverá por isso mais uns estudos entregues à LNEC e à Confederação e o Ministro mais interessado naquela construção passará a usar chapéu, não vá uma ou as duas entidades que elaboram o estudo lembrar-se dele.
Admiro no entanto a coerência e a perseverança com que o Senhor Ministro das Obras Publicas luta por uma causa em que acredita e põe todo o seu empenho, demonstrando ser homem de palavra e de antes quebrar do que torcer.
Personalidade tão forte, Eng., inscrito na Ordem (segundo afirmou) com conhecimentos profundos a ponto de ser Ministro – de outra maneira, não chegaria lá(?) -, simpatizante e admirador convicto de Espanha e da união Espanha-Portugal, cujo nome passaria a ser Ibéria, não pensou ainda ir oferecer-se a Madrid ao Zapateiro para fazer parte dos quadros de qualquer coisa naquele País, dado até haver conotação na ideologia.
Outra noticia que me chamou a atenção foi aquela do Rastreio colectivo ao cancro da próstata no Parlamento. Acho despropositado o exame nesta altura, já que o S. Martinho ainda só foi há 2 dias e portanto os parlamentares dos mais variados partidos, todos com as calças em baixo em posição de decúbito ventral, a serem enrabados pelos médicos, alguns com unhas grandes e negras da merda do ânus anterior, sujeitos portanto a apanharem alguma doença venérea, a peidar-se uns contra os outros, deveria ser um espectáculo inolvidável e digno de ser apresentado no Pavilhão do Parque das Nações.Quando agora disse que se encontravam na posição de decúbito ventral, ainda me lembrei de evocar (com os tomates à mostra), mas isso seria desvirtuar a realidade, dado me parecer que os parlamentares não os têm nem nunca os tiveram.
E para finalizar, o mesmo jornal, na sua página 6, publica uma fotografia do Sr. Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, de braços cruzados a apreciar 2 trabalhadores municipais a limpar uma passadeira numa rua, afirmando que “esta zona tem de ficar um brinquinho” e que de imediato vão ser pintadas 5 (“cinco”) novas passadeiras.
Portanto, senhores lisboetas, já podem dormir descansados que nessa ocasião (salvo raras excepções) não serão atropelados. É na realidade uma notícia de grande efeito e interesse à nossa sociedade.
Já me passava… Também informa o “Global” que o senhor presidente da Câmara de Viseu e Presidente da Associação Municípios, foi interceptado pela PSP e informado por uns jornalistas que circulava em excesso de velocidade, não lhe tendo sido aplicada a respectiva multa, sendo mandado em paz.
Quando é que eu chego a Presidente de qualquer merda?

12.11.07

General Cagalhão

Esta história conta uma faceta da minha meninice, igual a tantas outras que as crianças na sua infantilidade cometem e magoam os adultos e mais ainda quando esses adultos são anciãos.
A minha idade rondaria aí uns 8, 9 anos, portanto em plena Guerra Mundial. No meu concelho foram colocados em pontos estratégicos, pelo Ministério da Guerra, canhões de calibre elevado, holofotes que à noite rompiam o céu em todas as direcções, para em caso de necessidade deitar abaixo os hipotéticos aviões alemães que viessem despejar metralha em Lisboa. Simultaneamente, fizeram-se casernas para aquartelar militares.
Aconselhava-se a população a colocar tiras de papel nos vidros das janelas para evitar os estilhaços e as lâmpadas eram azuis para não denunciar as nossas posições.
De quando em quando, havia simulações de ataques e era giro (visto pelos olhos duma criança) toda a gente a correr e a esconder-se nos mais variados sítios, chegando mesmo a ver um bêbado meter-se debaixo duma carroça na ocasião em que por motivo do alarido o cavalo começou aos coices.
O movimento e as conversas dos adultos eram observados pelos miúdos, que depois nas suas brincadeiras os imitavam.
O meu pai trabalhava na maior empresa do mundo que manufacturava cortiça. Mundet, de seu nome. Só em Portugal tinha 5 fábricas, colossos daquela indústria. O desentendimento entre os seus sócios originou uma das grandes calamidades que se abateu sobre as centenas de famílias inteiras que lá trabalhavam. Enquanto os advogados se gladiavam em tribunal, enchendo os bolsos de chorudos vencimentos, os trabalhadores agonizavam na miséria.
Numa taberna perto da minha porta, apareceu por essa altura um ancião, sei lá que idade teria, muito velho, sem dentes, cujo queixo quase encostava ao nariz. Não recordo, se é que alguma vez o soube, de onde veio. A sua casa era um barracão de chapas de zinco, situado a 100 ou 150 metros da minha.
O homem tinha um carinho especial pela miudagem e gostava de nos contar aventuras de que dizia ter sido protagonista. Entre muitas contou-nos esta, que no fundo dá origem à minha narração:
Quando tropa, foi destacado para Moçambique acompanhando Mouzinho de Albuquerque e tinha feito parte do comando que foi prender Gungunhana. A miudagem bebia as suas palavras e ele contava que tinha visto crocodilos de 10 metros, leões enormes, cobras que comiam bois inteiros, que era o cozinheiro do batalhão e que os colegas lhe chamavam por brincadeira “General Cagalhão”.
Que foi o homem dizer... A partir daí, por abuso (as crianças tem sempre tendência para abusar) nunca mais se chamou Almassa, que era o seu nome; passamos a chamar-lhe General Cagalhão.
Evidentemente, coitado do General, deixou de nos contar histórias e a malta nunca mais deixou de lhe chamar General Cagalhão; e o pior é que sempre que o apanhávamos na sua casa e sem possibilidades de nos reconhecer, dávamos grandes murros nas chapas de zinco e gritávamos “General cagalhão”. Quando ele abria a porta já não via ninguém.
Até que um dia ele me topou, fez queixa ao meu pai e este pregou-me uma tareia, que hoje se designaria das modernas, mas que naquele tempo era das antigas.
A partir daí, foi remédio santo: o Zé do Cão, nunca mais chamou General Cagalhão ao General Cagalhão, mas quando passava por ele, baixinho e só para mim, dizia assim: “General Cagalhão”. E dizia só para mim lembrando-me da “pisa” que tinha levado. O General morreu poucos anos depois. Era criança não fui ao funeral, portanto fiquei sem saber se a sua farda levaria as insígnias de tão elevada patente.